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Conversa de convés*

Colaborador de Navegos resgata mais uma crônica do périplo do grande poeta Thiago de Mello por três estados nordestinos

*Thiago de Mello

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(A bordo do “Alcantara”)

– No convés de bombordo deste Belo barco da Mala Real Inglesa, ao entardecer do primeiro dia de viagem, em regresso ao Rio, sento-me numa espreguiçadeira e fico, ao doce embalo do Atlântico, relembrando as grandes coisas e revivendo os memoráveis momentos desta minha breve andança pelo Nordeste – o nosso grande e fabuloso Nordeste, onde, vamos reconhecer, palpita a vida brasileira em sua mais pura expressão cultural e humana. Essas lembranças, essas grandes coisas, ou as direi, em lírico mais realíssimo rol, em crônicas vindouras. Por hoje vou ficar de conversa de quem vai navegando. Conversa digamos de convés, por onde passeiam, no instante em que escrevo, velhas senhoras inglesas, com os seus vestidos estampados, suas cabeleiras brancas, e seu caminhar tranquilo.

Largamos de Recife ao meio-dia; e ressoam ainda em meus ouvidos as vozes das lindas adolescentes que, em homenagem de despedida a alguém querido que deixava Pernambuco, começaram a cantar e a dançar no caís. Foi um autêntico “show”. Seriam umas quinze jovens, todas adolescentes, todas bailando e cantando, todas maravilhosamente lindas com os seus vestidos coloridos e de saias muito rodadas, festivas sob a radiosa e transparente manhã pernambucana. Quando o navio já sw fazia ao largo, suas vozes ainda se ouviam, suaves na distância; as suas figuras aladas se distinguiam, rodando e bailando, colorida clareira, no meio da multidão do caís.

Vamos avançando por este mar, sobre cuja face, verde ao meio-dia e azul profundo até há poucos instantes, o navio vai deixando o seu rastro prateado e fugaz. O tempo está excelente. “Claudy, fine and…”, registra o diário de bordo.

Vi há pouco, no castelo da proa, várias crianças brincando. São filhos de portugueses e espanhóis que vem como emigrantes para o Brasil. Robustos e corados, os meninos correm, e riam, e rolam pelo chão. É exíguo demais o espaço de que eles dispõem para brincar. Tenho vontade de ir buscá-los lá em baixo e trazê-los para este convés espaçoso e deserto, onde eles folgariam melhor. Mas o navio tem as suas leis, e o jeito é ficar a contemplar, apenas, o mundo feliz das crianças. É a classe mais alegre de bordo, a terceira. E a primeira é a mais triste: há horário para tudo, e dir-se-ia que a alegria é “organizada”, britanicamente organizada.

No alto da torre, altivo e solitário, viaja um marujo idoso, o rosto curtido de sol e de sal, o olhar atirado proa além; e enquanto o navio avança, vencendo milhas, viajam saudades, amores, pelos caminhos do seu velho e marinheiro coração.

Os barcos são assim. Trazem na proa audácias e esperanças; as cismas e as sombras viajam nos porões.

*”Contraponto (“O Globo”, terça-feira, 14/6/1955)