*Thiago de Mello
– Quando esta crônica estiver impressa, circulando, através dos exemplares de O GLOBO, por esta cidade de São Sebastião, estarei viajando. Mas dessa vez não de bonde, pelas ruas deste distrito que, conforme os intuitos de Dr. João, muito em breve não mais será federal. Não. Estarei viajando pelo oceano, a bordo do “Santa Maria”, a caminho do Recife, de onde – naturalmente, após o abraço em Mauro Mota, em mestre Gilberto Freyre, em Olivio Montenegro e outros bons e pernambucanos amigos – seguirei de automóvel, ao lado de meu compadre Odilon, para João Pessoa, distinta capital da Paraíba, segundo costuma dizer certa senhora ali nascida, com um tom que pode ser de pilheria mas também parece, ás vezes, ser um derramamento de saudade e de bem-querer à terra natal (onde ela não vai faz um bocado de anos) – coisa natural e até bonita, mais bonita ainda com aquele adjetivo, que ela foi buscar não sei onde, e que dá uma delicadeza à expressão, quase doçura – distinta capital da Paraíba – talvez porque em voz doce de mulher, não sei.
Sei que vou para João Pessoa, onde ficarei o tempo que as nuvens deixarem. As nuvens, o mar, os verdes, o canavial, o azul do céu do Nordeste, o rio Paraibano (irmão do outro, grandão e fundo, que escorre lá para as bandas do Norte), os caranguejos, os coqueiros, a água de um côco adormecido no sereno, os caminhos no chão, a fala dos homens, as grandes sombras nos engenhos antigos, as moças de cabelos lisos, indo e vindo na calçada do entardecer, o trabalho nas usinas, o açucar preto, os violeiros, tristíssimos, de repente cantando, as flores da beira de estrada, os grandes galopes pelos ermos da madrugada, as janelas da casa-grande abertas para a solidão, o antigamente, o nunca mais; todas essas coisas e ainda mais o silêncio, o sono, a cisma – o “cismar sozinho à noite” de que fala o grande Gonçalves – governarão os meus dias, os meus desejos, quem sabe o meu coração.
Contarei coisas de lá. Da viagem também. Das gaivotas desvairadas no meio do mar, do firmamento à meia-noite, sem terra na redondezas; das moças talvez debruçadas na amurada, o perfil sereno e suave, talvez pelo tombadilho avançando, vestidas de azul-claro, bem claro. Contarei do que me for dado ver e ouvir, e ter e amar. Mas não é tudo, é claro. Guardarei um pouco para relembrar, sozinho, quando a velhice chegar. Adeus.
* “Contraponto” – O GLOBO (quinta-feira, 19/5/1955)
NOTA DA REDAÇÃO:
Com esta coluna inicia-se a transcrição da série de cinco artigos do poeta amazonense acerca da estadia nordestina entre a última semana de maio e a primeira de junho, entre Recife, João Pessoa, Ceará-Mirim e Natal, cujos detalhes iniciais foram alvo de artigo inédito em postagem anterior. Os personagens reais citados, escritores, podem ser pesquisados pelo leitor pela internet. Desnecessário explicar e detalhar sobre gente importante e famosa no meio literário.
Há um detalhe interessante no texto do conhecido literato. Ele deixa transparecer, na época, que eram favas contadas a construção da então futura e nova capital federal no Planalto Central. Brasília já era promessa de campanha do presidente eleito em outubro daquele mesmo ano, o ex-governador mineiro Juscelinno Kubitschek de Oliveira. O potiguar João Fernandes Café Filho assumira em agosto do ano anterior com o suicídio do presidente Getúlio Dorneles Vargas.