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Crepúsculo de um ídolo

O pensamento de Nietzsche em uma perspectiva pessoal demonstra as rupturas necessárias com a imagem do pensador alemão.

*Alexsandro Alves

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I.

Eu me aproximei do pensamento de Nietzsche aos 17 anos, levado pela música de Wagner. Em um texto sobre Siegfried, obra de Wagner, citava Nietzsche, para ele, este personagem wagneriano era a representação dramática de sua ideia de Übermensch (Além do homem, ou como ficou mais conhecido, Super-homem). Com aquela idade, e com pouca leitura de filosofia, foi amor à primeira vista.

O que amei em Nietzsche? Sua crítica à cultura ocidental, tal qual ela se desenvolveu a partir de Sócrates, sua crítica à moral cristã (mas com o tempo todas as religiões seriam sistemas de escravização, como ele designa), também sua apreciação do fenômeno estético como criador do mundo – nesse ponto, em seu livro sobre Nietzsche, Heidegger designa a arte como a suprema realização da Vontade de Poder (Wille zur Macht), além disso, sempre serão divertidas algumas observações dele contra Wagner.

Porém o tempo foi passando e aquela admiração se tornou em preguiça. Para que serve, após tudo, um pensamento que proclama a destruição do fraco pelo mais forte, em outras palavras, que assegura que a vida do mais fraco é concessão do mais forte? O mundo que Nietzsche tenta criar com seu pensamento é um mundo além da moral e além da compaixão, e isso não me interessa.

Quando eu era mais jovem me interessava e era mesmo interessante porque eu não assumia Nietzsche em todas as suas consequências para a vida. Heidegger pediu desculpas por ter apoiado o Nazismo e por tê-lo justificado no pensamento nietszchiano. Porém isso não foi uma apropriação indevida. Nietzsche é uma espécie de supremacista. Não diria um supremacista branco, pois Zaratustra é negro, mas é um supremacista da Vontade de Poder – esse sentimento, essa embriaguez, em Nietzsche, justifica tudo, até a destruição do mais fraco pelo mais forte.

Um mundo nietzschiano sem dúvida viveria em um eterno devir até a sua destruição completa. Quem pararia o Além do homem em sua Vontade de Poder? Na Genealogia da Moral, Nietzsche lamenta que o povo germânico, a Besta Loira, como ele denomina, não cause mais pânico e terror na Europa – a esse respeito, o século XX demonstrou que a Besta Loira germânica estava apenas adormecida, foram apenas necessários alguns pensamentos e alguma música para ela erguer a espada.

 

II.

Uma outra questão é a maneira como Nietzsche expõe o seu pensamento. O aforismo, aqueles parágrafos curtos que falam sobre tudo e nunca chegam a lugar nenhum, pode ser bastante consumível, porém é insuficiente. Em seus livros maduros, raramente Nietzsche consegue escrever um livro sobre um só tema. Geralmente o que ocorre é que em uma página temos um curto pensamento sobre arte, depois um curto pensamento sobre religião, depois um curto pensamento sobre política e assim por diante. Eu continuarei lendo seus livros porque, embora eles não ensinem a pensar, ensinam a escrever – ele é um poeta, um pintor das palavras, mesmo um músico. Sem dúvida seus livros são literariamente inesquecíveis, apaixonantes e perfeitos. É um mestre supremo da escrita e hoje eu o leio dessa forma, me deleitando com a construção refinada de suas frases.

O problema é o desenvolvimento das ideias. Poucos livros de Nietzsche contêm um pensamento desenvolvido do início ao fim: O nascimento da tragédia, Wagner em Bayreuth, Genealogia da Moral, O anticristo, e seus escritos contra Wagner que ele reuniu em O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, são os melhores exemplos. E o pensador não conseguiu sistematizar seu pensamento. Sendo assim, embora seja tido entre filósofos, ele não o é, ao menos na mesma medida de Kant ou Adorno. As contradições são frequentes. Não apenas as mais gritantes, como as suas opiniões sobre Wagner (comparem O nascimento da tragédia ou Wagner em Bayreuth com O caso Wagner e Nietsche contra Wagner), mas também suas apreciações sobre os gregos e os romanos, sobre a arte, sobre o militarismo, sobre os judeus, sobre os alemães, sobre os franceses, enfim, parece uma Bíblia – no sentido das inúmeras e flagrantes contradições.

 

III.

Várias ideias de Nietzsche são extensões ou desenvolvimentos de ideias wagnerianas. Não apenas O nascimento da tragédia, de 1872, está no caminho do Beethoven, um ensaio, de 1870,  mas outros livros de Wagner, como A arte e a revolução, de 1849 e A obra de arte do futuro, de 1852, contêm sementes que germinariam em Nietzsche. O encontro com o pensamento de Schopenhauer, seria um divisor de águas na trajetória de ambos, mas sob perspectivas diferentes – e isso é muito importante.

A radicalidade do pensamento de Nietzsche é uma constante gradativa observável em seus livros. A ruptura com Schopenhauer abre as perspectivas de um pensamento extraordinariamente novo e que Nietzsche explorou de forma perturbadora. Com relação a Wagner, esse encontro o fez negar, em muitos aspectos, o que escrevera. A maneira de pensar do compositor, ensolarada, que Nietzsche admirava e exploraria, foi substituída pelo pessimismo. Então, se Wagner não tivesse encontrado e aceitado a filosofia de Schopenhauer como exemplo de vida, seu pensamento chegaria aos extremos nietzschianos?

Essa radicalização do pensamento de Nietzsche, que os nazistas absorvem, é um dos criadores dessa ideologia que deu início à Segunda Guerra. Assim, como se surpreende Roger Scruton: como foi possível, com relação ao Nazismo, que a figura de Wagner esteja nele crucificada, enquanto a de Nietzsche, não? Eu imagino que essa seja a maior injustiça histórica cometida contra um artista. Claro que sempre haverá o antissemitismo para justificar tal fato, mas mesmo assim não é suficiente: muitas das páginas de Proust demonstram claramente que o antissemitismo era praticado pela Europa inteira – o antissemitismo não é wagneriano, é europeu.