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Crianças Podem Ser Cruéis

Em um texto que levanta uma questão pouco discutida e por isso cercada de mitos, a pedagoga, professora e filósofa Nadja Lira, adentra em um mundo colorido, mas envolto em sombras.

Nadja Lira

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Acácia Amarela é uma pequena cidade perdida no interior do Estado Papa-Jerimum e conta com uma população estimada em 30 mil habitantes. Como em todas as cidades, existe uma parte dos habitantes que se inserem entre os mais abastados, os quais vivem em lugares privilegiados, desfrutando dos benefícios concedidos pelo dinheiro. Suas casas são luxuosas, dispondo de alguns benefícios como gerador elétrico para o caso de faltar energia, água encanada com chuveiro quente e frio para atender às suas necessidades, entre outras regalias.

O pessoal residente neste lado da cidade frequenta bons restaurantes, têm carro próprio e seus filhos estudam em escolas particulares. As famílias não frequentam o Hospital Municipal de Acácia Amarela, porque além de possuir um plano de saúde, ainda podem sair da cidade para tratamento, quando a ocasião requer.

Na outra parte da cidade vivem as pessoas mais simples. Aquelas as quais a vida não deu tantos privilégios, mas elas vivem dignamente graças ao seu trabalho. Estes moradores não dispõem de um gerador elétrico, por exemplo. Quando falta energia, eles se valem dos velhos lampião a gás. Não dispõem da comodidade de ter água quente no chuveiro, mas podem esquentar a água para facilitar o banho nas duras noites de inverno. Esta parcela da população matricula seus filhos nas escolas públicas e os leva às consultas periódicas no Hospital Municipal da cidade.

É justamente na parte mais pobre da cidade onde Nadira passa a maior parte dos dias, na companhia da sua avó. Ela é filha de Fernando, trabalhador do Cartório e de Mariana, professora da Escola Municipal Acácia Amarela. A menina fica com a avó para que os pais possam trabalhar. Nadira tem uns oito anos de idade e é, segundo sua avó, uma menina calma, estudiosa e obediente. Jamais questiona as ordens dos adultos. Para se ter uma ideia, ela é capaz de passar o dia inteiro sentada na janela, caso alguém esqueça de tirá-la do lugar.

Muito tímida, a menina passa o dia entre os livros, já que é uma grande apreciadora da leitura – prática à qual é profundamente estimulada por seu pai. Não tem muitos amigos. Apenas os coleguinhas da escola, com os quais brinca na hora do recreio.

Por se sentir solitária, é natural que valorize as poucas amizades que tem e cultiva o desejo de conquistar novos amigos. Foi por esta razão que ficou muito feliz no dia em que Elisa e Marcela residente do outro lado da cidade, foram à casa de sua avó num domingo à tarde, a fim de convidá-la para um passeio. “Posso ir, vovó?” Pediu ela, no que foi prontamente atendida.

E a menina saiu feliz com as colegas. Andaram por toda a extensão da Rua São José apreciando as vitrines, passaram pela praça central da cidade e entraram no parquinho onde Elisa e Marcela comeram pipoca, tomaram sorvete, mas sequer ofereceram a Nadira.

Depois disso, Elisa e Marcela decidiram deixar Nadira para trás, inventando mil histórias para que a menina desistisse de acompanhá-las no passeio. Ela não entendia nada. Afinal, se sua companhia não era bem-vinda, por que foram à casa de sua avó para convidá-la?

Mas, logo ela compreendeu que as duas não estavam interessadas na sua amizade: Queriam humilhá-la, mostrar-se superior, por pura maldade de criança. Afinal, crianças podem ser bem cruéis e as duas meninas naquele momento, se mostravam profundamente cruéis.

Nadira sentiu os olhos enchendo de lágrimas. Havia uma mistura de sentimentos dentro dela naquele instante, mas ela era corajosa e orgulhosa o bastante para não permitir que aquelas duas a vissem sofrer ou chorar. Ergue a cabeça e saiu caminhando até a Praça da Prefeitura onde encontrou seu pai conversando com alguns amigos. Aproximou-se dele e contou a história. O pai a pegou no colo e disse para que ela esquecesse aquele episódio. “Elas não são sua amiga”. E levou-a para casa.

Anos se passaram, Nadira cresceu, transformou-se em uma profissional respeitada na área da Publicidade & Propaganda, porém, jamais esqueceu aquele episódio de sua infância. Ainda hoje se pergunta as razões pelas quais as crianças têm um comportamento cruel, perverso e agressivo. É incrível o poder que determinadas crianças têm de se tornarem chantagistas, manipuladoras ao mesmo tempo em que parecem profundamente sedutoras e inocentes.

A crueldade infantil deixou de ser considerada como um segredo para a ciência. Pesquisadores já descobriram que perversidade infantil ocorre devido à uma falha nos circuitos cerebrais. Portanto, é preciso redobrar a atenção para os casos, porque as crianças podem ser cruéis. E estas pequenas crueldades deixam marcas.