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Cristina dos Pimpões

Navegos reproduz fragmento de Uns de Macatuba, livro ainda inédito que reúne conversas do autor com homens e mulheres da cidade de Mossoró.

*Franklin Jorge

Cristina Gomes Pereira: sob este nome de ritmo sincopado esconde-se a maior foliã de Mossoró de todos os tempos, Cristina dos Pimpões. Uma lenda viva que, aos 79 anos, continua contribuindo para a animação do carnaval de rua da famosa Terra de Santa Luzia.

O carnaval para mim é uma coisa maravilhosa de que eu gosto muito. Rosalba, quando prefeita, acabou com o carnaval de rua. Somente Chico Fumaça fez um carnaval comunitário muito bom no Conjunto Mota Neto, onde ela mora… Agora que ele perdeu a perna, avacalhou-se e deixou de mão o carnaval, reclama. Chico Fumaça, para quem ainda não sabe ou não é do lugar, é o ex-Rei Momo de Mossoró, Francisco Márcio Gomes, que perder a perna em consequência de uma gangrena.

Narradora fluente e jovial, Cristina alegra-se ao lembrar que este ano o prefeito Dix-huit Rosado botou novamente o carnaval de volta às ruas de Mossoró. Vige Nossa Senhora! Eu fiquei encantada. Ele disse no rádio: ‘Vai ter carnaval sim senhor!’ E teve. Ele disse também num recado para mim: ‘Cristina, você está me ouvindo? Eu ainda vou botar uma rua em Mossoró com o seu nome…’ Aqui todo mundo quer saber porque ele me dá esse tratamento… Quando ele me encontra na rua é aquela festa…

De fato, numa das fotografias que Cristina me mostra enquanto conversamos, ela aparece numa delas, metida numa fantasia, dançando com o prefeito. Ambos de mãos dadas. Ele sério, ela sorrindo, sorrindo…

Nessa idade eu ainda desfilo como convidada nas escolas de samba de Mossoró… O senhor me acredite: isso pra mim é uma alegria muito grande. Quando u me lembro que nos cinco anos do governo de Rosalba não tivemos carnaval… Esse ano, com a restauração do carnaval por Dix-huit, foi uma maravilha. Eu fui convidada por cinco escolas de samba. Mas escolhi a Balanço do Samba…

Lavadeira e engomadeira de profissão, Cristina hoje está aposentada com um mínimo de salário que mal lhe permite manter a casa.Veja o senhor que a bem dizer ainda estamos no meio do mês e eu já estou devendo seis milhões na mercearia… Minha despesa é muito grande. Eu sustento filhos e netos… A casa, como vê, ainda está pra ser terminada… Veja este chão como está… Essa luz queimou e eu não tenho outra lâmpada pra mudar. O muro está caindo… Porém eu ainda tenho a esperança de ganhar pelo menos três milheiros de tijolos e três sacos de cimento, pra fazer o muro. Pelo menos isto, já que para o prefeito sou tão importante e mereço até ser nome de rua…

Cristina enumera suas necessidades sem perder o humor. Velha e acabada, mantém acesa a chama da alegria. Para ela, viver não é um triste ofício, mas uma aventura cheia de surpresas. O importante é a gente se distrair do mal, que existe em abundancia por aí..

Ela conta que com a idade de 12 anos começou a brincar carnaval e nunca mais parou. Tudo começou quando apareceu por aqui um pessoal que abriu um clube com a bandeira nas cores verde, amarela e branca. Esse clube, que existe até hoje, se chamou dos Pimpões. Ficou sendo. Eu não tenho inveja de nenhum clube. Antes eu não me fantasiava, mas Zecalistrato, ex-gerente do Armazém Esplanada, me disse um dia: ‘Cristina, faça a sua fantasia e venha na frente dirigindo o seu clube…’ apois não é que eu segui o conselho dele? Em tempos melhores eu botava pagando do meu bolso, 10, 20 moças fantasiadas para brincar nas ruas de Mossoró. Todas elas de saínha curtinha nas cores dos Pimpões. Era uma beleza… A alegria que eu tenho é que as pessoas gostam mais de mim do que dos Pimpões… Quando eu apareço na rua, durante o carnaval, as pessoas vão logo gritando ‘Cristina, Cristina, Cristina…’ Aqui pra nós, é uma alegria muito grande.

Cercada de netos e filhos que entram e saem, Cristina conta que tem uma filha, Salete Paulista, que sempre a aconselha a renunciar à folia carnavalesca. É ela quem faz as minhas fantasias. É uma costureira muito perita. Faz gosto uma costura que ela faz. E tudo tão bem acabado… Ela diz: ‘Mamãe, deixe o carnaval…’ e eu lhe respondo que, enquanto tiver fôlego e vida, brincarei.

O carnaval é a minha razão de existir. É uma coisa que está no meu sangue derna os 12 anos. Sempre brinquei… Houve um tempo em que eu, com as economias de minhas lavagens e engomados de roupa, comprava de seis peças de pano no Armazém Esplanada, cada uma com 25, 28 metros, para fazer fantasias pras moças… Eu tinha gosto de comprar esses panos para me vestir e vestir todo o meu pessoal… E nunca ficava devendo nada a ninguém… Para mim, o importante era brincar.

Segundo Cristina o melhor carnaval de Mossoró foi o deste ano. Dava gosto ver a organização. Foi um carnaval civilizadíssimo como nunca vi. A festa foi organizada por aquele filho de Dix-neuf, Gustavo Rosado, que é uma ótima pessoa e dizem que é presidente de não sei de que repartição. Ele e Felipe Caetano se desdobraram para fazer o sucesso da festa…

Se eu acompanhei aquela confusão dele com Canindé Queiroz? Toda cidadã acompanhou aquela coisa desadorada. Agora, do que eu gostei mais nessa pelenga, foi a resposta de Gustavo… Bem que o pai dele, Dix-neuf não queria nunca que ele entrasse nessas coisas de política. É sempre uma baixaria. Dix-neuf não gostava de política e vivia sempre de fora, insatisfeito com a politicagem…

Quando fala de política, Cristina não esconde o seu desgosto. É que ela sofreu e sofre na pele as consequências da politicalha. O senhor me acredite… Minha filha Vera Paulista trabalha há 24 anos no Estado e ainda não teve a sorte de ser enquadrada no cargo. E sabe por quê? Porque a mulher de Luiz Sobrinho, que trabalha na Rádio Difusora, teve raiva dela e não a enquadrou entre os funcionários da Escola Eliseu Viana. A mulher de Luiz Sobrinho era diretora da escola e prejudicou a minha filha até hoje… Como o marido trabalhava na rádio, a coisa ficou por isso mesmo. Agora, vou procurar Dix-huit, mas dizem que é muito difícil falar com ele. É muito difícil falar com homem que tem muitas secretárias, e a Prefeitura, dizem, está cheia de secretárias… Nossa Senhora! É secretária demais para um prefeito… Tudo isso é artifício de política para não dar cabimento ao povo.

Cristina conta que casou com Omarques Martins Paulista no dia 29 de fevereiro de 1936. Como eu havera de esquecer desse dia…? Era só o que faltava! Ele trabalhava na fábrica de óleo de uns americanos que tinham como testa-de-ferro Zé Câncio e Mota Neto. Meu marido também é marceneiro, mas agora está aposentado. Tivemos quatro filhos: Vera, Salete, João Gãogol e Lourdes… Netos? É só o que tem. Quinze netos e doze bisnetos… Todo esse povo vive comigo.

O casamento é bom, sim senhor. Quando eu me casei, muita gente aqui dizia que não ia dar certo; que eu não passaria uma semana casada, porque eu era muito danada e sapeca. Ele também gostava de uma fuzarca amuada e freqüentava a rua das mulheres, que ficava aqui perto. Ele tinha ódio à dança. Mas eu, que era de fato danada, ensinei ele a dançar e estamos juntos até hoje. Agora tem um detalhe: quando ele aprendeu a dançar direitinho, me proibiu de dançar e se danou no mundo, dançando com qualquer uma. Quando moço ele era um homem lustroso, bem corpulento, de boa aparência. Bebia. Ainda hoje toma as suas bicadas, mas pouco. Não é mais como antigamente… Um tempo ele ficou muito doente e passou um ano e cinco meses no hospício, lá em Natal. O governador naquele tempo era Dinarte Mariz. A gente pagava 70 mil-réis de diária no hospital. Diziam aqui que ele adoeceu por causa da bebida. Mas a verdade era outra. Era coisa dos nervos. Ainda hoje, na força da lua, ele se alvoroça. Já está aposentado ganhando uma mixaria, mas ainda é um homem moço e vigoroso. Tem a minha mesma idade, 79 anos… Daqui a pouco ele chega. Ele foi visitar uma filha…

Durante muitos anos, antes de casar, Omarques morou na Lagoinha, plantando e colhendo nas terras pertencentes ao seu pai. Quando a mãe dele chegou, ele veio para rua e aqui ficou, nesse tempo, com 10 mil-réis eu ia pro mercado e comprava a feira da semana. Com 20 mil-reis eu comprava até coisa de que eu não precisava, o senhor só acreditaria vendo. Agora, vive-se pela hora da morte. O dinheiro pouco não chega para nada. Os preços comem todo o dinheiro. Meu marido entregava o dinheiro dele na minha mão. Em toda a sua vida, ele nunca foi pruma loja comprar um metro de pano. Tudo era comigo… Mas a verdade é pra ser dita. Quando ele bebia ficava insubornável. Às vezes, quando ele chegava bêbado, era um horror. Porém nunca me bateu. Porque eu saia de casa quando ele chegava bêbado. Eu sempre lhe dizia que, se ele me batesse, eu nunca mais viveria com ele… Como o senhor está vendo, a minha vida é muito assim…assim..

Cristina reconhece que tem um calibre bom e não esquenta com nada. Todo aperreio é comigo. Mas a gente vai levando a vida do jeito que Deus é servido. Eu tenho tido uma vida contrariada. Mas eu relevo, eu relevo… Viver é relevar. Eu só digo aos meus filhos que eles vão sentir muito a minha falta, quando eu me mudar desta para uma outra vida melhor… Aqui tudo é comigo.

Os Pimpões são um dos clubes carnavalescos mais tradicionais de Mossoró. Cristina tinha 12 anos quando ingressou no então recém-criado Clube dos Pimpões, ao qual permanece fiel até os dias de hoje, como gosta de enfatizar. Quem formou o Clube dos Pimpões foi Pedro Pequeno, lembra. Depois ele se mudou para Fortaleza e entregou o clube a Manoel Borges, que já morreu. Antigamente o carnaval era melhor, porque havia lança-perfume, confetis e serpentina…

Mossoró era muito animada e os clubes pequenos podiam contratar dois, três músicos, para marcar a folia. Eles tocavam, a bem dizer, de graça. Não era como hoje, com os preços pela hora da morte…Cristina, porém, é otimista e acredita que a vida deverá mudar sempre. Nada fica parado. Tudo evolui e se modifica… Agora me lembro de uma marchinha que os Pimpões cantavam num desses carnavais… Dizia assim:

Saiu na rua o carnaval

Fazendo revolução….

Cristina solfeja muito animada, marcando o ritmo da marchinha, sem vontade de parar. Gostou? Para quem conhece uma letra, sabe interpretar uma marchinha dessas, não acha…? Saiu na rua o carnaval, fazendo revolução… A palavra revolução já diz muita coisa… Eu gosto muito de dar entrevista e não tenho enfado nem preguiça de conversar e responder aos jornalistas. Eles querem saber de tudo… Eu não acho ruim não… Volte. Volte quando quiser. Numa entrevista sempre fica muita coisa de fora… Antigamente a gente tinha alguém que escrevia as nossas marchinhas. Ninguém copiava as do rádio, não. Era tudo autêntico. Pode escrever.