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Da atualidade de Gregório de Matos Guerra

Fundador de Navegos leva o leitor desta revista a passear pela verve satírica do poeta baiano apelidado de ‘Boca do inferno’e ‘Boca de Brasa’, um dos expoentes do Barroco brasileiro que viveu entre 1636 e 1695, para desgosto de uns e deleite de outros.

Franklin Jorge

[email protected]

James Amado, irmão de Jorge Amado, levou a vida a estudar e compilar os versos de Gregório de Matos e Guerra (1636-1695), o cognominado Boca do Inferno’ ou ‘Boca de Brasa’, o flagelo dos corruptos e magistrados venais que fez surtar a sociedade de seu tempo com a contundente precisão de seu acoite. Deu-nos assim, em várias edições e títulos, uma coleta significativa da produção literária desse poeta do nosso Barroco.

Autor de sátiras mordazes, granjeou inimizades e em consequência sofreu desterro em Luanda, onde advogou até seu retorno definitivo ao Brasil e à Bahia de São Salvador, onde nasceu e tirou o sossego sobretudo da magistratura e de meirinhos, já corruptos contumazes em pleno Seiscentos.

Filho de fidalgos oriundos do Minho, viveu vida folgada e, por fim, tendo esbanjado tudo com farras e mulheres, acabou em penúria. Deu nome à Cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras, fundada pelo crítico Araripe Junior, que reconheceu e prestigiou postumamente o seu talento lírico e satírico. Tendo vivido em uma [época em que a Imprensa era proibida no Brasil, seus versos circulavam profusamente em copias e oralmente.

Vivesse em nosso tempo, teria no Supremo Tribunal Federal matéria infinita e desabrida para alimentar-lhe o estro. Transcrevo abaixo três poemas seus que que nos fazem pensar em alguns togados e universitários.

Leiamo-los:

Sátira a um Desembargador que prendeu um inocente e soltou um ladrão:

Senhor Doutor, muito bem-vindo seja

A esta mofina e mísera cidade,

Sua justiça agora e equidade,

E letras com que a todos causa inveja.

Seja muito bem-vindo, porque veja

O maior disparate e iniquidade,

Que se tem feito em uma e outra idade

Desde que há tribunais e quem os reja. Que me há de suceder nestas montanhas

Com um ministro em leis tão pouco visto,

Como previsto em trampas e maranhas?

É ministro de império, mero e misto,

Tão Pilatos no corpo e nas entranhas,

Que solta a um Barrabás e prende a um Cristo.

 

Soneto:

A cada canto um grande conselheiro

Que nos quer governar cabana e vinha,

Não sabem governar sua cozinha,

E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,

Que a vida do vizinho, e da vizinha,

Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha

Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,

Trazidos pelos pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,

Todos, os que não furtam, muito pobres,

e eis aqui a cidade da Bahia.

 

Descreve a vida escolástica:

Mancebo sem dinheiro, bom barrete,

Medíocre o vestido, bom sapato,

Meias velhas, calção de esfola-gato,

Cabelo penteado, bom topete.

Presumir de dançar, cantar falsete,

Jogo de fidalguia, bom barato,

Tirar falsídia ao Moço do seu trato,

Furtar a carne à ama, que promete.

A putinha aldeã achada em feira,

Eterno murmurar de alheias famas,

Soneto infame, sátira elegante.

Cartinhas de trocado para a Freira,

Comer boi, ser Quixote com as Damas,

Pouco estudo, isto é ser estudante.

– Gregório de Matos, in ‘Obra poética’. (Org.) James Amado. (Prep. e notas) Emanuel Araújo. (Apres. ) Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.