Honório de Medeiros
Peço licença para discordar de quem faz críticas ao instituto da delação premiada.
E o faço afirmando, inicialmente, que assim como os críticos da delação premiada, também tenho receio do Estado.
É como se lê: do Estado. Se bem me lembro, não somente anarquistas, mas também marxistas concordam quanto a todo Estado ser de exceção; uns mais, outros menos.
Mas não sei bem como se pode afirmar que o instituto da delação premiada seja característico de Estados de exceção.
Sei ainda, e bem, por outro lado, posto que a lógica o impõe, que uma análise crítica de um instituto como esse não pode ser feita sob o prisma da reserva moral aos delatores. Não faz sentido.
Não posso condenar a arte de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), autor de “Viagem ao Fim da Noite” (Companhia de Bolso; 536 págs.; 2009), em decorrência de seu antissemitismo e nazismo. Tampouco condenar Ezra Pound, autor de “Os Cantos” (Nova Fronteira; 704 págs.; 2015), por seu fascismo.
Alguns afirmam que a delação deu azo a todo o tipo de barbárie na história.
Acredito firmemente que não podemos confundir a delação privada com a delação premiada, da mesma forma que não podemos confundir assassinato com morte em estrito cumprimento do dever legal – como o fazem os soldados nas guerras.
Sabemos isso: não por outra razão, muitos aceitam a delação premiada, desde que submetida ao aparato civilizatório dos direitos fundamentais individuais.
Ora, assim o é em relação a qualquer instituto do Estado. Qualquer aparato do Estado que não esteja submetido a limites é “espelho da retaliação, perseguição”, a face oculta da opressão, como se diz.
Parece óbvio que nada é (do) mal em si mesmo. E qualquer instrumento, seja abstrato ou concreto, pode ser manipulado de acordo com diferentes faces da moral.
Não por outra razão, a mesma enxada que rasga a terra para a semeadura pode vir a ser a arma que semeia a morte.
Discordo, pois, de quem afirma ser contraditório confiar em um criminoso que se submeteu à delação premiada.
Na verdade, o Estado não está aqui ou ali para confiar em quem quer que seja: seu objetivo é trabalhar as declarações do delator confrontando-as com informações das quais disponha para alcançar a verdade dos fatos.
Crer que o Estado possa agir impunemente a partir de filtros morais é extremamente perigoso, e à pergunta que alguns fazem, acerca de ser ou não aceitável uma pessoa sob juramento denunciar seus cúmplices, apresentar um relato verdadeiro e ser perdoado por pelos menos parte dos seus delitos, a resposta óbvia é sim!
Assim aconteceu na história recente da Itália, para combater a Máfia. Lá, o instituto da delação premiada impediu, até onde sabemos, que aquela organização criminosa assumisse, de vez, o controle do Estado.
Aconteceu o mesmo na Colômbia, em relação às FARC.
Não é isso que pretende fazer a Polícia do Rio de Janeiro, para erradicar os soldados que o tráfico infiltrou e infiltra em suas fileiras?
Em relação ao suposto delator sociopata, hipótese com a qual alguns lidam para condenar o instituto, não posso concordar com sua plausibilidade.
Ora, os depoimentos dos delatores não são verdades com as quais irão lidar ingênuos, inocentes policiais ou promotores, em somente uma etapa de um processo criminal.
Qualquer declaração de alguém em uma investigação é avaliada a partir de tudo quanto compõe o problema com o qual a Polícia e o MP estão lidando. Chamam a isso de “contexto”.
Quanto ao mais, principalmente no que diz respeito aos comentários críticos feitos pelos que afirmam que nos faltam “freios morais”, lamento, mas também vou discordar.
A ninguém deve ser permitida a condição de impor “freios morais” a quem quer que seja. “Freios legais”, sim; morais, não. A moral é privada; a lei, pública.
Nunca é demais lembrar que os Estados nos quais há um melhor índice de desenvolvimento humano, nos moldes pensados por Amartya Sen, que o propôs, são aqueles em que as leis, tanto quanto possível, a sociedade respeita.
O instituto da delação premiada é um eficaz meio de combate à corrupção metastática que infesta o Estado brasileiro, seja no Executivo, no Legislativo, ou no Judiciário.
Honório de Medeiros, advogado, é mestre em direito de Estado pela UFCE.
MALHETE O atual ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, que quando juiz da 13ª Vara Federal do Paraná, em Curitiba, homologou quase 200 delações premiadas na Operação Lava Jato; investigações do Ministério Público Federal, Polícia Federal e Procuradoria-Geral da República suscitaram os acordos que levaram à prisão dezenas de empresários e políticos, entre eles o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva