*Franklin Jorge
É sabido que a leitura pressupõe, mais que um esforço, uma colaboração. Borges tratou o tema em um texto clássico, “Pierre Menard, Autor do Quixote” (in “Ficções”, 1944). Mestre do paradoxo e do ilusionismo que faz a magia da literatura, a personagem do seu conto – tornado clássico porque relido — “escreve” obsessivamente o “Quixote”.
O argumento é simples. Clérigo ambicioso, Menard deseja ser mais do que um mero autor de livros. Ele é autor de uma obra “visível” e facilmente enumerável, porém a sua grande obra que o consagra é a “subterrânea”, a interminavelmente heróica, a obra ímpar e multifacetada que o identifica, de maneira total e apaixonada, com um autor em especial.
Sua admirável ambição seria produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra, linha por linha – com as de Miguel de Cervantes. Ser, de alguma maneira, Cervantes e chegar ao “Quixote”, lhe parecia menos árduo e menos interessante que seguir sendo Pierre Menard e chegar ao “Quixote” através das experiências de Pierre Menard.
Borges adverte-nos que a literatura não é exaurível pela suficiente e simples razão de que um livro só não o é. O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, porém o segundo é quase infinitamente mais ambíguo, como o queria Baudelaire, que viu na ambigüidade uma riqueza e preconizou, como um profeta da literatura, que toda obra de arte há de ter uma lacuna para o deleite daquele que a desfruta.
Assim, mediante uma técnica nova, Menard enriquece a arte imóvel e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. É axioma borgeano que uma literatura difere de outra ulterior ou anterior, menos pelo texto que pela maneira de ser lida. Um livro é um diálogo; e, sem dúvida, uma forma de relação. O postulado borgeano é simples – o ato de ler transforma o texto individual de um autor em obras de todos.
Em uma suposta correspondência entre Borges e Menard, este afirma que pensar, analisar, e inventar não são atos anômalos, mas a normal respiração da inteligência. Embora cético e talvez agnóstico, Borges acredita na idéia de que todo homem deve ser capaz de todas as idéias e que no futuro o será.
Essa diversidade só é possível através da colaboração do leitor que dialoga com o texto. Assim, o “Quixote” de Menard assimila e incorpora o de Cervantes, fá-lo substancialmente mais rico, pois se amplia com as experiências de Pierre Menard.
Emil Rodríguez Monegal enfatiza que nenhum texto de Borges pode ser lido literalmente. Ora, se o leitor é capaz de ler por baixo do texto, no intertexto das alusões filosóficas, outra perspectiva se abre.
Disse Montaigne que a leitura serve principalmente de pretexto a meditações; é um exercício espiritual que faz trabalhar o julgamento, não a memória. Através da leitura, a literatura se torna coletiva e, ao mesmo tempo, anônima. O “Quixote” de Cervantes é o de Menard, que o lê e assimila. Assim, segundo o paradoxo borgiano, todos os homens que repetem uma linha de Shakespeare são Shakespeare.
Há tantas maneiras diferentes de ler como há abismos na leitura. Flaubert pondera que a biblioteca de um escritor não deveria conter mais do que cinco ou seis livros, fontes, no entanto, que é preciso reler todos os dias. Quanto aos outros, graceja, é bom conhecer – e só.
Porém, como a leitura exige espírito! Flaubert recomenda a leitura como um processo terapêutico digno de atenção. Escrevendo a Mll. Leroyer de Chantepie, em 1857, aconselha-a: “Procure não viver só em você. Faça grandes leituras. Consagre-se a um trabalho regular e fatigante” (grifos nossos). “A vida – prossegue – é tão horrorosa que o único jeito de suportá-la é evitá-la. Enquanto trabalha não se pensa no indivíduo miserável que somos”…
Como alguém que sofreu na própria pele os pavores da literatura (carta a Caroline, sua sobrinha, em 10 agosto de 1876), Flaubert tem, como escritor que escreve em plena consciência, um objetivo secreto. Aturdir de tal forma o leitor para que ele acabe ficando louco…
Borges vê a leitura como um processo posterior ao ato de escrever; e considera a leitura uma atividade mais resignada, mais civil, mais intelectual. Porém, adverte-nos, os bons leitores são cisnes ainda mais negros e singulares do que os bons autores. A obra literária seria, para o autor de “Ficções”, não só produto do autor como do leitor. A leitura na qual não predomina o prazer é inútil. Por isso, Borges dizia aos seus alunos, “quando um livro não lhes interessar, deixem-no”.
Ler e escrever são formas acessíveis de felicidade, assegura-nos o texto borgeano. É espírito também. Nele, a emoção é necessária porque não se pode viver sem ela. Sem leitura não se pode criar e sem emoção, tampouco.
Assim, Dante — que escreve o poema — é um dos personagens da “Comédia”, um livro que pode ser lido, segundo Borges, de duas diferentes maneiras, uma das quais literal e a outra alegórica.
Em depoimento sobre Leopoldo Lugones, Borges observou que para ele a leitura de um livro não era menos memorável que uma paisagem ou o amor de uma mulher, algo assim como o foi para Alonso Quijano – um homem modificado pela biblioteca – já que Alonso Quijano toma a decisão de ser D. Quixote depois de ler os diversos livros de cavalaria.
Dizer que ler ajuda a pensar é um truísmo, porém ainda são poucos os leitores capazes de forjar uma opinião isenta, própria e original; ou, em outras palavras, de julgar unicamente de acordo com as provas de que dispõe.
Georges Simenon observa em entrevista a “Paris Review” que os leitores atuais desejam livros mais complexos; livros que tentam penetrar em todos os recantos da natureza humana; porém, ao dizê-lo, creio que se equivocava, pois nunca se leu tanto e tão mal como atualmente. O que se lê […] Banalidades. Banalidades pasteurizadas, fabricadas em série pela indústria cultural. Em “Adriano Sétimo”, Frederico Baron Corvo condena os intentos de uniformização como crimes antinaturais; um insulto à divina inteligência que distingue as criaturas. Declararia ainda, nessa obra premonitória, que os servos de Deus deviam ser reconhecidos por sua amplitude de idéias, sua generosidade e firmeza da vontade.
Simone de Beauvoir admite que as leituras formaram-na mais que os professores. Com nove anos ela leu “Mulherzinhas” e identificou-se apaixonadamente com Joe, uma das heroínas do romance de Mary Ascott. Joe escrevia. Simone, empolgada com a sua heroína, começou a escrever…
Sartre, por sua vez, confessa que descobria mais realidade nas palavras do que nas coisas. E, numa confirmação do seu pensamento, escreveu “As Palavras”, para esclarecer que foi nos livros que encontrou o universo e confundiu a desordem das suas experiências livrescas com o curso imprevisível dos acontecimentos.