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Da modernidade: intercâmbios entre literatura e música

Em sua erudita estreia como Colaborador de Navegos, Alexsandro nos confirma que o poeta é o melhor dos críticos, ao discutir temas caros a Richard Wagner (1813-1883), Marcel Proust (1871-1922) e  Virgínia  (1882-1941), sobre a única questão que importa para um autêntico criador, a união entre palavra e música, que após Ludwig von Beethoven (1770-1827) se tornou determinante para a  sobrevivência da arte dos sons, segundo sua síntese irretocável.

*Francisco Alexsandro Soares Alves

Na clave de dó, piano, o solo de violoncelo inicia em semínima com um mi² e deságua em colcheias, ré², dó², si, a melodia, cada vez mais intimista, interioriza-se, piú piano, compasso após compasso, para raiar em Sol² bemol, crescendo agora novamente em piano, quando os outros violoncelos, alguns na clave de Dó outros na de Fá, ao solitário se juntam, e a melodia, quieta, tranquila, que parece indiferente ao amor que está nascendo, embora seja sua expressão primeira no drama, vai silenciando, e entrega o destino ao tenor, que em colcheias, iniciando em Si na clave de Sol em Fá maior, devagar, como marca a partitura, divagando em modulações: inquietudes, incertezas e instabilidades tonais, porque amar nunca é uma viagem próspera em mar calmo… Sela seu fado com as palavras Kühlende Labung gab mir der Quell (Água fresca e revitalizante me ofereces) – a semente da primavera de amor que se abrirá na cena 3 já está plantada.

Este momento se encontra no início da Valquíria (Die Walküre), de Wagner. Após uma fuga à noite por uma floresta em meio a uma tempestade, Sigmund encontra refúgio no lar de Sieglinde.

Esta ópera é um dos exemplos mais perfeitos de união entre palavra e música. Durante séculos a poesia sempre esteve subordinada à música. A expressão musical não permitia que as notas ficassem abaixo dos fonemas e mesmo composições tão dependentes do texto, como sobretudo as óperas, deviam obedecer a seguinte regra: a poesia é escrava da música.

Porém o século XIX trouxe um novo paradigma para a arte. O Romantismo desafiava todas as convenções clássicas em todas as artes: na poesia, o verso livre ao invés do soneto; nas artes plásticas, o horror e a monstruosidade, em pinceladas espessas, derrubavam uma representação pictórica mais tranquila e de linhas perfeitas e graciosas do classicismo. A cidade e a indústria, como frisou Baudelaire em sua poesia, sua sujeira, seu povo sem casas, abandonado, mendigando, seus prostíbulos e crimes, davam nova voz aos poetas. Embora que Baudelaire nunca tenha abandonado o verso alexandrino, precisamos frisar.

Na música a situação era muito perturbadora, porque após a terceira fase de Beethoven, os compositores, por medo ou por outras questões, não ousariam continuar no caminho da música absoluta dos últimos quartetos do Mestre de Bonn.

Sendo assim, foram propostas muitas alternativas para esse impasse. O primeiro deles foi criar uma nova forma, mais livre, não sujeita à rigidez formal da sonata. Surgia o poema sinfônico, que é a tentativa de compositores de espelhar, em música, um texto poético ou em prosa, sem a ajuda da palavra. Liszt e Berlioz serão os mais afoitos desse novo estilo e o Assim Falou Zaratustra, de um Richard Strauss romântico tardio às portas do século XX, será seu exemplo mais famoso. Nessa obra, o compositor dialoga, sem palavras, com a filosofia de Nietzsche.

Uma outra maneira de não encarar Beethoven diretamente foi a sinfonia programática. Onde o compositor utiliza uma história, de autoria própria ou não, para musicar. A diferença para o poema sinfônico está na forma em quatro movimentos, ou mais, que a sinfonia programática segue. O poema sinfônico é sempre em um movimento. A Sinfonia Fantástica, de Berlioz, é um exemplo perfeito desse gênero.

Porém o que Beethoven fez no final de sua Nona Sinfonia não poderia, por muito tempo, passar incólume. Várias vozes se ergueriam para criticar ou apoiar a decisão beethoveniana de colocar um texto em uma sinfonia, de ousar misturar a sala de concerto com o palco de ópera. O mais temido crítico musical do século XIX, o vienense Eduard Hanslick, demolirá essa obra, denominando-a de “monstruosidade estética”. Porque seus três movimentos iniciais são a apoteose sinfônica da música pura, absoluta – que não precisa da palavra para se afirmar. Porém no quarto movimento entram solistas e coro com um texto de Schiller, que aliás condenou o uso de poesia em músicas ao afirmar que uma boa música não nasce de uma boa poesia.

E aqui chegamos em Wagner. Ele amou Beethoven como nenhum outro antes ou depois dele. A alma de Wagner era sinfônica, porém sua época exigia novos e radicais conceitos na arte. E assim criou uma nova forma, o drama musical, semelhante à ópera, semelhante à sinfonia, sem ser de fato nem uma coisa ou outra. Uma nova forma que Richard Strauss, Alban Berg, Schoenberg, Debussy e outros adotariam ao compor para teatro. As diferenças entre ópera e drama musical não são o cerne desse texto, por isso não me estenderei nesse aspecto.

A questão é a união de palavra com a música, que após Beethoven se tornou questão de sobrevivência para a arte dos sons. O músico romântico é um músico que busca na literatura seu ponto de partida para a música sem preocupações e tormentos formais rígidos dos clássicos. Seja no poema sinfônico, na sinfonia programática ou no drama musical – as obras foram criadas seguindo gêneros quase rapsódicos, que encontrariam sua razão de ser na ideia e na palavra e não unicamente na música em si. Houve uma apropriação da palavra pelos músicos. Quando Wagner compõe partituras como A Valquíria, não é a música que sobressai. E nem é o texto. É uma união de ambas as artes. Cada nota está colocada observando a pronúncia exata da língua alemã.

Na literatura ocorrerá uma apropriação semelhante. Para Baudelaire a natureza é um templo de correspondências; Verlaine vaticinará que antes de tudo a música e os simbolistas usarão a palavra como acordes para seus encantamentos literários valorizando a sugestibilidade acima de tudo. Não à toa, o principal órgão de veiculação das ideias simbolistas se chamará La Revue wagnérienne. Todavia não é apenas a poesia que se servirá da música.

A prosa desenvolverá o fluxo de consciência, através de autores como Édouard Dujardin, Marcel Proust, James Joyce, Virgínia Woof, Clarice Lispector e outros.

O fluxo de consciência é uma apropriação de certas características musicais transpostas para a palavra. A música é uma arte que se desenvolve no tempo basicamente. Porém a noção de tempo numa composição musical é variável. Uma mesma obra pode ter tempo de execução diferente, a depender do ponto de vista do regente. Em outras palavras, a depender da leitura do regente, a passagem de tempo e a noção da passagem de tempo variará dentro da mesma obra. Essa variação é sentida pelo ouvinte. E nesse jogo entre regente e ouvinte, as percepções de certos detalhes da partitura não serão as mesmas. No fluxo de consciência, a ideia central é fazer que a narrativa brote de reminiscências das personagens. Uma palavra levando a situações que à primeira vista não possuem sentido ou ligação. Como Swann, personagem do livro Em busca do tempo perdido, de Proust, que através do tilintar de uma colher de chá, por exemplo, rememora uma cadeia de acontecimentos aleatórios, onde apenas a introspecção e o tempo são capazes de ligá-los. O escritor age como um regente que está lendo uma partitura, isto é, a psiquê de seu personagem. Ao deixar fluir no tempo, como que perdido, as divagações de seus personagens, o escritor transforma seu texto em uma melodia infinita, onde o caos que muitas vezes é instaurado, provoca insights na percepção do leitor, à maneira dos leitmotive dos dramas musicais.

Essa técnica não será usada em narrativas épicas. Ao contrário. Quanto mais intimista a situação, mas o fluxo de consciência abraçara a narrativa. Não são mais os grandes acontecimentos que provocarão a passagem do tempo no romance. É, muitas vezes, apenas um ato mínimo como a necessidade de preparar um bolo (Mrs. Dalloway, de Woof).

Virgínia Woolf retratada por Vanessa Bell 1934