• search
  • Entrar — Criar Conta

Da Obra Poética de Myriam Coeli (Parte 2-2)

Colaborador de Navegos, equipado de extraordinária bagagem erudita, musical e linquística, realiza a mais ampla e profunda interpretação da poesia coeliana, colocando-a em seu devido lugar no Parnaso contemporâneo. Sua palavra é hidromel para leitores exemplares.

*Francisco Alexsandro Soares Alves

A obra-prima de Myriam Coeli são as cantigas reunidas em Cantigas de amigo, de 1980, dividido em 24 partes, um poema introdutório chamado de Fundamentos, seguido de 23 cantigas (I à XXIII). É um livro polêmico. Aqui, a poetisa escreve em um português que respira ares provençais e arcaicos. É um livro polêmico. Por dois motivos. Por que uma autora moderna, ciente das renovações estéticas na palavra trazida, por exemplo, pelos concretistas, se interessaria pela cantiga provençal? E por que uma mulher que vivenciou o socialismo soviético, o movimento feminista americano, os hippies e todo a renovação social nos costumes que marcou o mundo na segunda metade do século XX se interessaria pelos temas das cantigas de Dom Dinis?

Eu imagino que respostas a essas perguntas não devem conter desculpas para a forma e muito menos tentar enquadrar esse livro em um feminismo forçado.

Primeiro, a forma é atemporal. Seja o soneto, a glosa, a trova. A forma se encaixa na vontade do homem de impor seu mundo através da ordem e do conhecimento sistematizados e racionalizados, não há nada mais humano do que a forma. Enquanto existir humano, existirá a forma. A questão nem deveria esbarrar na forma, porém depois dos campos estéticos plantados pelos concretistas, o poeta se vê obrigado a uma justificativa quando trabalha com o que sempre foi seu assunto – a palavra, e exatamente porque usa a palavra como formadora do verso, como unidade rítmica e formal e não a palavra que é apenas acessório para uma brincadeira no espaço até descambar em um plano que por fim é uma espécie de comunicação não-verbal. Não foi à toa que Ferreira Gullar, nosso maior poeta vivo, negou o neoconcretismo e retornou ao vinho da boa e velha palavra e que é sempre a boa e velha palavra.

E Coeli nas Cantigas de amigo nos fornece uma adega inteira de bom vinho. Como é delicioso se embriagar com suas redondilhas maiores – millésime do mais fino e complexo bouquet. Aqui não há espaço para “o poema que conta o casinho fajuto de amor, cujo limite inferior e superior é o púbis” (Eli de Araújo). Uma poesia como a das Cantigas é uma poesia que apenas poderia ser feita por um indivíduo talhado na boa gramática e com cultura suficiente para se erguer e levantar a vista para quase 800 anos de arte e trazer novidade ao gênero.

O segundo ponto é mais daninho. O artista pode ser uma antena de seu tempo. Ou não. Porém eu considero absurdo que o artista tenha que engajar a sua obra. A arte não tem obrigação alguma com a política ou com a economia. A não ser que o artista entenda que assim deve ser. A mulher artista não tem obrigação com o feminismo em sua arte. A não ser que assim ela entenda que deve ser. Eu não noto feminismo algum nas Cantigas de amigo de Coeli. E se há, de tão bem conscientemente escondido, não se coloca como fator central para o mesmo. Por isso me cansou José Wilson Pereira de Azevedo em seu ensaio sobre as Cantigas de amigo, aquela ânsia de enquadrar o texto no feminismo. A única justificativa, e péssima justificativa, é o fato do texto na verdade ter sido escrito para um seminário sobre mulher e literatura em Brasília em 2011. Porém o texto de Coeli não é feminista. E nem se preocupa com isso.

O que mais chama a atenção é a recriação da cantiga para os nossos dias sem destruir a tradição, é um diálogo de iguais. É um trabalho de pesquisa e de amor ao mesmo tempo que é uma obra que delicadamente nos surpreende com a doçura de certa novidade, que Coeli sabe colocar sem alarde desnecessário, porque lhe é natural e ela tem domínio de si, de seu pensar e sobretudo, de ser verso.

Há uma ironia modernista no texto, que é finamente colocada, balanceada e refinada. Sem histerismos oswaldianos. A mulher continua sendo a amada que espera o homem, seu príncipe encantado medieval. Porém ela sabe o valor que o amor tem, e sabe que o tempo e o espaço podem acabar com o mesmo, dentro do padrão do eterno amor, estar a negócios em terras distantes é uma ótima oportunidade de ruptura.

Ah! quem sabe, sem mais demora,

Vinde todos, dizei-me agora

Em que se empenha meu senhor:

Se de mim já se enfadou,

Novo reino para outra criou.

Por favor, dizei-me agora

Quem souber, sem mais demora,

Onde estará

Meu traidor?

(Cantigas de amigo, V)

E na penúltima cantiga, a de número 22, Coeli dá um novo contexto à dimensão onde as cantigas se passaram. E também pinta sua tristeza. Sua melancolia. Essa inserção, abrupta, da ruptura espaço-temporal, posto que com essa cantiga a ação se passa agora em pleno século XX em Natal, é tão deliciosamente moderna, que quando acontece o estranhamento é logo aceito, porque o cenário é real, de uma mulher real. E há uma delicadeza que é reiterada e que se assenhora do livro inteiro nesse momento. Tem que ter refinamento e estilo, domínio da palavra e da ideia, para descortinar um palco acinzentado nestes termos.

Que outros castelos sonhados

(Que castelos meu senhor!).

Só pássaros, nuvens, plumas,

Mais belos que os de Almançor,

Já no tempo arrebatados

Com anjos, flores, escumas.

Vigésimo segundo andar

É castelo muito alto

Jaz entre Oriente e Ocidente

E se me seduz um salto

Convosco não vou ficar

Mas manchete, certamente.

(Cantigas de amigo, XXII)

Os dois últimos livros de Coeli, Inventário, de 1982 e Ave, Myriam, de 1984, são livros póstumos. O segundo deles a autora não chegou a organizar, tarefa esta que seu marido Celso da Silveira se incumbiu. São duas obras que, sobretudo a segunda, se apresenta como uma obra inconclusa.

Inventário se constitui de 18 poemas, 17 deles dedicados aos amigos e familiares da autora. Dentre os amigos, ilustres personagens da intelectualidade política e literária potiguar, como Djalma Maranhão, Berilo Wanderley, Franklin Jorge e Zila Mamede, entre outras personagens que marcaram e que marcam a vida política e artística do Rio Grande do Norte.

Medida da construção, poema dedicado ao prefeito Djalma Maranhão, perseguido pela ditadura militar e falecido distante de sua Noiva do Sol, no exílio, é centrado em fortes imagens acerca do operariado potiguar. Estrofe após estrofe, através de metáforas brutais e de um olhar cortante de crítica à exploração do povo que gera a fome, onde a própria fome se alimenta da miséria dos descamisados, Coeli retorna ao tema que explorou em Vivência após vivência, mas agora a poetisa farta sua lírica de agressividade e de peso que poderiam estar em uma peça de Brecht:

Quantos tijolos

desempilhados

toda semana

preparam a cesta

de um operário?

– Pilham seu pão.

Com quantos gritos

o mandatário

conscientiza

pobre operário

estrangulado

na vocação?

Quanta revolta

a língua trava

e dá ao peito

um ranço amargo;

– ele a quem cobra

a sua sobra?

Qual o salário

– sal e sudário –

que compra o pão?

Confrontos é uma série de cinco poemas dedicados a Franklin Jorge, intelectual e escritor potiguar, polêmico por suas aguerridas e fundamentadas críticas à cultura e à política do estado, senhor de um estilo que une o refinamento cultural ao martelo de um crítico de abrangente envergadura. Nesses poemas Coeli lança suas imagens metafóricas como um vulcão lançando larva e cinza:

Móvel traço

me articulo

em projetos

geométricos;

me circulo

convergente

para o ponto

de onde parto

com metáforas

divergentes.

(Confrontos, II).

Só o grito

é possesso

infinito.

Dilaceram

cotidianas

estas mortes

que obliteram

e das quais

ressuscito

anticristo

implosivo.

(Confrontos, V).

E temos o Poema à Garcia Lorca do Rio Cigano, que é dedicado à Stella Leonardos. Se nas Cantigas de amigo Coeli dialogou com Dom Dinis, aqui seu diálogo é com o grande poeta espanhol. Este poema contém as mais amenas e as mais tétricas imagens de Coeli. Pandeiros, ciganos, rio e luares caminham com os homens da Guarda Civil e suas armas e sua política e seu ódio. Lorca é a liberdade andaluza, e é a primeira vítima de Franco. As sinuosas águas do Rio Guadalquivir emulam a liberdade cigana e respigam assassinatos como o preço da liberdade. “Ah! triste rio de enganos/ quem te vê e não te chora? Lamenta Coeli, e lamentamos nós. Quanta dor! Quanta dor é sentir o silenciamento como pagamento por ousarmos ser o que somos, por sermos livres. Estas palavras são o testamento último da alma de Coeli, é um canto lamentoso à liberdade, em um mundo que sempre cobrará um preço, porque é feito de prisões visíveis e invisíveis.

Em Ave, Myriam a sensação de inconclusão é permanente. O livro contém poemas soltos que mais parecem projetos para outros livros que a poetisa não chegou a realizar. Poemas como Cantos do violino solitário e Livro do povo, divididos cada um deles em partes variadas, soam como livros em si mesmos, que sem dúvida seriam ampliados e transformados em livros à parte. Há também a revisitação de temas dos primeiros livros.

É tão visível o contraste temático, por exemplo:

Põe o arco sobre este corpo em cordas

e afina-o para o canto e suas claves.

Meu corpo é violino, fremente mar

(…)

(Cantos do violino solitário)

Com a alta dos preços

temos a alta dos óbitos

de crianças e velhos;

contra a fome, a inflação agride

e a marginalização cresce

além da alta dos mendigos.

(Livro do povo)

Por fim, um adendo importante. O título Ave, Myriam não é autêntico. A poetisa já estava morta. De forma que a escolha deste título pode passar uma ideia equivocada. A poesia de Coeli não é religiosa. Nem cristã. Nem católica. Os muitos elementos presentes em seus poemas que se relacionam com o Cristianismo não são colocados dentro da estrutura em uma interpretação dogmática dos mesmos. A poetisa trabalha com muita liberdade os símbolos cristãos. De fato, a intenção da poetisa ao inferir esta simbologia religiosa em seus textos é mais representação artística do que confissão de fé. Coeli trabalha estes símbolos não de maneira religiosa – ora é social, ora é metafisica, ora é até com leve escárnio, neste último com um ou dois exemplos em todo o corpo de sua produção poética. Uma leitura que se prestasse católica a essa poetisa teria que fazer muitas concessões à metafísica e ao misticismo, por vezes e, noutras tantas, à teologia da libertação, excomungada desde sempre do Catolicismo oficial. Não é dogma, é arte antes de tudo.

[Fim do artigo]

Acima em destaque Myriam Coeli em seus últimos anos abaixo capa de Cantigas de amigos.