*Francisco Alexsandro Soares Alves
Myriam Coeli de Araújo Dantas da Silveira, nasceu em 19 de novembro de 1926, em Manuas – AM e aos dois meses sua família muda-se para o Rio Grande do Norte. Em terras potiguares, sua família se instalará em São José de Mipibu. Coeli foi a primeira jornalista profissional do estado, e integrou a redação dos principais jornais potiguares. Mulher de intelecto abrangente, como se percebe pela sua escrita poética, objeto deste artigo. Ganhou diversos prêmios: duas vezes o Othoniel Menezes (poesia), em 1980 e em 1981, pela Prefeitura da Capital pelos livros Cantigas de amigo e Catarse, respectivamente; Fundação José Augusto, de poesia, em 1981 pelo Inventário. Coeli faleceu em 21 de fevereiro de 1982.
Todo o artista fala de si. Porém não é todo o artista que pode falar além de si. Que pode olhar para si, para sua arte, de cima, vendo sua arte mesmo como inferior a ele próprio. Há artistas que não ultrapassam a si mesmos, mesmo que nem sejam lá grande coisa. Que se perdem em seus sentimentos. Há livros mal escritos.
Porém há artistas que conseguem superar a si mesmos – por favor, quando falo em superar não me refiro à autoajuda, autoajuda não é arte. Que mesmo diante de acontecimentos por vezes dolorosos, sua arte permanece, unicamente, arte. Permanece intocável. Como um relicário. Há artistas que olham para Calibã em sua face mais horrenda e faz Calibã mergulhar num abismo. Artistas assim são poucos e são os que importam.
Quando abri o primeiro livro de Myriam Coeli, Imagem virtual, publicado em 1961, me deparei com um ensaio poético sobre a morte e sobre a vida. Tudo o que poderia haver de poético em falar sobre a morte, ela reuniu em seu primeiro livro. Uma poetisa que em sua estreia dialoga com a Morte por si só já merece o nosso respeito, o nosso olhar de admiração, porque não há tema mais filosófico do que a morte. E sobretudo, porque Coeli não fala da morte com pieguismo. Ela não se entrega à indulgência ou ao maniqueísmo. A Morte, em Coeli, é a aceitação final de tudo o que se viveu, de tudo o que foi moldado e o tempo adormeceu. Não há revolta contra a morte e nem uma crença infantil em uma ressurreição. Há o descansar em paz e a memória.
Porém a vida também está presente. Uma figura que permeia muitos dos poemas do livro de 1961 é a do barro. Há um fascínio da poetisa por esse elemento natural que funciona como uma antítese da morte em sua poesia. Deus criou a vida do barro, segundo a mitologia judaica e também a mitologia cristã – entre outras mitologias. O barro, em Imagem virtual, está ligado ao corpo – sendo o Canto – a palavra, o que lhe dá vida.
Não há vida sem Canto, sem palavra. A mãe é a grande oleira que sai moldando no tempo sua imagem; é o corpo da mãe que se completa ao moldar o seu filho; o barro é um aglutinador das experiências, porém estas apenas ganham sentido se forem tocadas pelo Canto, por isso que Ana Carolina, mesmo morta, descansado em paz, sempre será conhecida, porque a palavra de Myriam Coeli pousou sobre o barro que é Ana Carolina e o moldou para transfigurar a vida com a morte. Em seu primeiro poema, Elegias para Ana Carolina, Coeli inicia com a simplicidade de Drummond, para no mesmo poema abarcar a morte como um devir inevitável.
É mágica também a musicalidade da poetisa. Suas assonâncias em Toada lírica para o Natal mergulham o leitor num universo de melodias azuis que Chopin buscava. Pace Eli de Araújo, jamais lembrará Liszt. O húngaro é espalhafatoso, histriônico e barulhento. Tampouco Bach. A rigidez e a rebuscamento barrocos do alemão também não encontram lugar satisfatório aqui. A musicalidade de Coeli está mais para a irradiação cerúlea de um Chopin ou, mais anda, para as aquarelas impressionistas das tardes de Debussy.
Imagem virtual é um livro que se inicia no barro da terra para falar de morte e dialogar com a metafísica, e alça voo para vislumbrar o céu, mas não o céu imaginário dos religiosos. Não há Deus e nem ressurreição. É o céu do cosmonauta soviético Yuri Gargárin, que Coeli saúda com presságios inefáveis de acalanto e de vida. Do barro ocre para o azul celeste, Coeli estreia sua poesia exalando e cheirando ares novos.
Há um grande hiato entre seu primeiro livro e o segundo, Vivência sobre vivência. Quase 20 anos separam as duas obras e as mudanças não poderiam deixar de ser mais cortantes. Em seu segundo livro, o tom ameno do primeiro é solapado em favor de construções poéticas mais duras, violentas. Coeli muda o tom de sua palheta. Não é mais o azul, agora é o vermelho, vermelho de fúria. Outro contraste é a presença de Deus, que ocorre de muitas maneiras. Não que no primeiro a presença dele não seja sentida – ela o é, porém ele é apenas um acessório. Em Vivência sobre vivência encontramos mais forte a presença de Deus. E esse Deus deste livro, está presente de muitas maneiras. Coeli cita trechos da Bíblia, várias imagens em seus poemas aqui são imagens bíblicas: púrpura, paraíso perdido, pão e vinho e frases que são oriundas dos evangelhos. Ainda não há ressurreição espiritual, porém um Cristo se levanta na sociedade, ressuscitando suas dores nas tragédias dos mais desfavorecidos. E aqui temos novos personagens na poética da autora. O proletariado.
Este proletariado, que também é uma imagem para esse novo Cristo que Coeli introduz, está presente na Ode para o homem novo em versos como “o que se exibe/ em técnicas crucificado,/ de cotidianas frustrações/ asfixiado.” Ou ainda “Um novo Cristo/ assalariado/ padecendo mortes/ por coisas vivas/Ressuscitado/ em seus estigmas./ Transfigurado/ em chagas vivas./ Animal que lambe suas feridas.” Não pode existir sentimento mais cristão do que o de sofrer com os que mais sofrem. Este é o mais profundo cristianismo, além do espírito, além do dogma e mesmo além da crença em Deus. Sentir compaixão. Para Coeli, a dor cósmica do Cristo sobrevive e é verdadeira no suor dos mais pobres, como uma transubstanciação materialista histórica, as chagas da morte do Cristo são as chagas da vida do assalariado. Um olhar mais perturbador encontramos na Cantiga dos catadores de lixo de Cidade Nova: “Nos edifícios/ que se colete/ muito mais lixo;/ e na cidade/ se multiplique/ mais imundície;/ para o sustento/ de nossos filhos/ que nessa escola/ caráter formam/ entre detritos.”
Cristo também surge através de justaposições e metáforas na excelência da Elegia a Vladimir Komarov: “posto no céu/ – o astronauta/ é cosmomártir.
Na morte tácita:/ geração trágica/ do homem massa.
Por trás da máquina,/ id da máscara/ – o mortonauta.”
Uma parte significativa do livro é composta por odes. As primeiras quatro evocam os quatro elementos da natureza. Uma ode para cada elemento: fogo, terra, água e ar. Ela está formando seu mundo, após Imagem virtual. Esse mundo é feito da fúria do fogo e de imagens plenas de caos onde o Espírito vivificador é a imagem da inquietação e da luta. Nesse momento, como já dito, Coeli abandona o lirismo azul de Imagem virtual e se lança em um redemoinho de limo e caos – a vida brotando da desordem. Sobretudo nessas odes há uma certa aproximação com os metafísicos ingleses, os medos e as angústias falando de uma cosmogonia que, por fim, se instaura dentro do nomos social. Após instaurar seu caos criador, de organizar tal demiurgo, seu cosmo, a poetisa mergulha no mundo dos homens. Sua Ode à máquina é um poema de antíteses refinadas e de sutis metáforas, como se observa já na primeira estrofe:
A máquina tem arcabouços de ferro, cortinas de aço
e as mais delicadas filigranas de ouro e púrpura.
Nela se engastam as riquezas: as que vêm da terra
e as que da terra nos fazem fortaleza.
Se a modulação de sua metálica voz é monótona e fria,
nela pousam pássaros e se inquietam sonhos,
para que os espantos da beleza cresçam.
Há uma ironia sutil, na Ode à máquina, que a poetisa desenha quando escreve:
Descobrindo o homem, Adão de esquecido paraíso
e em seu chão caído
nele o mastro ergue e o domínio firma.
(…)
Ferido embora dessa ilusão intranquila
à máquina se prende e dela já é peça.
E quem hoje pode pensar o homem sem a máquina? Numa estranha simbiose onde o homem se desumaniza e se torna um ser cada vez mais binário, como são binárias as ações das máquinas. Porém esse homo faber ainda é homem, e se é homem mesmo o metal frio pode dotar de poesia:
Mas como flor se abre no instante pressentido, quando a mão
de ferro feita, segura a mão humilde que se abre
em sentenças de poesia,
no trânsito dos seus dias,
pois mais que sonho não engrenam as peças.
Acalanto, Arquitetura, Partilha e Dual são poemas onde Coeli transfigura fonemas em acordes musicais, a poetisa trata estes poemas como partituras. São partituras formadas por assonâncias múltiplas que vagam por regiões tonais diversificadas à maneira de uma peça em forma sonata. Em Acalanto, que pode ser lido como um primeiro movimento de sonata, a poetisa inicia seu primeiro tema na primeira estrofe enquanto harmoniza vogais abertas e fechadas:
Sela a boca
o espasmo
deste pranto?
Teço ao rosto
acalanto.
Se almenara
queima o peito,
flor é alma
nesta calma.
Insuspeita.
A tonalidade é quebrada por uma súbita modulação pelo termo “insuspeita”. Por mais que o “e” fechado seja constante na estrofe, quando o ouvimos nesta palavra, no verso final da estrofe, há uma quebra harmônica provocada pela vogal “u” em insUspeita. Na segunda estrofe, o segundo tema da sonata, a preponderância de vogais fechadas dá um novo tom ao poema, que na primeira estrofe variou entre vogas abertas e fechadas de maneira mais intensa. Nesta segunda estrofe, a poetisa a inicia e a finaliza na mesma tonalidade, que é repetida em momentos bem específicos na estrofe, como se se tratasse de um ritornello. É o fonema /ô/, que é ouvido no início, no quinto verso e no último:
E o desgosto
desgastando?
Leve o riso
se arqueando.
Tão bem posto
medo e dor,
asco e pejo
– contingência
do que sou.
É o segundo tema de um movimento de sonata, tem um caráter diferente do primeiro, inclusive por seu final sem quebras como se em si mesmo se resolvesse, um arco melódico que se completa em si mesmo.
Nas terceira, quarta e quinta estrofes, Coeli dá mais liberdade às variações em assonâncias múltiplas, algumas delas já ouvidas anteriormente, entrecortadas por aliterações como na quarta estrofe: “Ser sabendo/ dor de ser/ frágil lodo/ Céu sem asas/ para engodo.” Estas estrofes podem se tratadas, dentro de nossa analogia com a forma sonata, como um terceiro tema? Não é muito ortodoxo um terceiro tema na forma sonata, geralmente se trabalha com dois temas por movimento, porém não é algo que perturbe essa análise, mesmo porque Bruckner sempre usa três temas em seus movimentos. É apenas incomum este procedimento. Eu prefiro entender como um momento de fantasia da poetisa, onde ela entrelaça, por exemplo, melodias já ouvidas nos temas anteriores, como as aliterações supracitadas que ocorrem nos primeiros quatro versos da primeira estrofe ou as repetições de assonâncias já ouvidas antes. Ou seja, funciona como um desenvolvimento e recapitulação, típicos da forma sonata. E, de forma cíclica, como é a própria forma sonata, Coeli retorna à tonalidade inicial na sexta estrofe final:
(…)
Dor de ser
sufocando
neste pranto
o disfarce
de acalanto.
Fechou com perfeição a forma. Brava!
[Continua amanhã]