Franklin Jorge
Certa vez, num encontro fortuito com Carlos Drummond de Andrade nas proximidades da avenida Rainha Elizabeth, no Rio de Janeiro, ele pediu-me ele que anotasse apelidos correntes no Rio Grande do Norte, relacionados a escritores, artistas e políticos. Drummond os colecionava e pretendia elaborar um ensaio sobre o assunto que muito lhe encantava e divertia.
Ao voltar para Natal, alguns anos depois, fiz essa lista, porém, não nomeei os portadores das alcunhas, não sei por quê. O poeta mineiro recebeu-a, leu, agradeceu e lamentou não puder usá-los como pretendera. Queria o nome de batismo ou civil das pessoas e de seus respectivos apelidos, de preferência acompanhados de alguma informação biográfica e episódio ou fato elucidativo do aposto, algo mais consistente, que em meu afã de pesquisador ainda novato não considerei recolher. Não me ocorreu fazer isto, nem ele lembrou-me ao solicitar-me a atenção para um assunto um tanto especial.
Lembrei-me que em Natal o folclorista Veríssimo de Melo se debruçou sobre o assunto em uma plaquete, alvo de posterior polêmica instaurada pelo satírico e luxurioso glosador Celso da Silveira, contendo alguns apelidos notórios. Foi a minha primeira fonte, mas não a principal; esta seria a escritora Nati Cortez, que me fez ler pela primeira vez Cora Coralina e conhecia como ninguém a história secreta de Natal, sabendo contá-la com extraordinária riqueza de detalhes e histrionismo – pois era além de dramaturga, uma atriz histriônica, segundo uma verve que a singularizava e que fez de mim, durante anos e anos de convívio e conversas, um seu encantado e fiel ouvinte. É personagem dos três volumes de meu livro “O Spleen de Natal”.
Dona Nati sabia os apelidos dos antigos, porém, como o assunto não me interessava naquele instante, fiz parco registro, embora nunca tenha deixado de lembrar-me do apelido do astrônomo Antonio Soares Filho, astrônomo que vivia de observar o céu noturno de seu retiro na Redinha, chamado à socapa de “Farinha Mofada”, contudo esqueci ou perdi em uma de minhas mudanças a explicação de sua origem.
Outra fonte preciosa, para mim, das tradições da cidade sobre o Potengi, foi Clarice Palma, atriz cômica, dotada de grande personalidade histriônica, dominava a cena. Sabia como ninguém dos pequenos escândalos e costumes locais, as frivolidades da moda efêmera, o dolce far niente, a vida social espelhados em alguns romances e novelas. Luís Rabelo, outra fonte emérita e inesgotável, cujos pais foram contemporâneos do piedoso padre João Maria, padroeiro da cidade, e do valente e astucioso capitão Joca do Pará.
Mais recentemente, no início deste século, o pesquisador Gutemberg Costa publicou em “Dicionário Papa-jerimum – Apelidos & Afins” (Argos; 2001), um rol de apelidos e alcunhas, em edição bonita mas incompleta e lacunosa, mal pesquisada, superficial, meramente enumerativa; enfim, sob vários aspectos, profundamente questionável. Uma obra inquestionavelmente de carregação.
Autor das “orelhas” do livro em questão – que considero uma obra sui generis –, notei, porém, em seus verbetes, várias ausências notáveis. Talvez o autor, pelo açodamento de pesquisador incauto, ou temendo represálias e retaliações, deixou de fora justamente aquelas alcunhas que teriam conquistado para si grandes desavenças, inimizades, perseguições e aborrecimentos dos quais quis fugir, omitindo figuras que melhor seria não tê-las como inimigas e desafetos.
Essa omissão de apelidos notórios, correntes nos círculos culturais da cidade, constitui lacuna indesculpável num pesquisador sério já consagrado pelo oficialismo. Uma verdadeira traição ao leitor, privado, por conveniência do autor, de informação confiáveis. Como ignorar, por exemplo, os apelidos de figuras carimbadas como Vilma de Faria, caricaturada como “Bracinhos de Pernil”; como esquecer os jornalistas Vicente Serejo (“Cloretinho de Sódio”), Rejane Cardoso Serejo (“Coelhinha de Páscoa”) e Sanderson Negreiros (“Espírita de Porco”)? O primeiro, depois da falecida ex-prefeita de Natal, ganhou esse apelido certamente por ser oriundo da cidade de Macau, terra das salinas; a segunda, por causa de seus dentes finos e compridos, semelhante aos dos roedores; e o terceiro, talvez, por ser devoto e praticante da doutrina de Allan Kardec.
Também Lacrau Jr. não foi arrolado nessa lista inconclusa e medrosa – negra para alguns que se acham indigitados pelos gênios do humor; uma mera questão de ponto de vista, para outros. O livro em si não contribui em uma vírgula para a divulgação e sedimentação de um imaginário local, impressivo. É um objeto gráfico bonito a embrulhar a sulanca verbal.
Ora, como sempre costumo dizer, escrever não é para todo mundo. Escrever com seriedade, quero dizer, significa, em grande parte, desagradar e provocar descontentamento e até as vinditas, as represálias, algumas especialmente severas, na Capitania onde quase todos carregam reis na barriga, eminências do Conselho facilmente irritáveis. Escrever, em essência, é dissecar. Isto é tão claro que não admite contraditório. Escrever para agradar é atividade de colunistas sociais, não de escritores sérios e cônscios do significado de que se reveste esse ato contundente, feito originalmente com o uso do estilo, um instrumento cortante com o qual o escriba inscrevia, nas tabuinhas de argila, as palavras.
Contudo, Costa me inclui em sua relação o apelido com que Tarcísio Motta me brindou. “Formiga Atômica”, que a rigor, a meu ver, constitui uma homenagem engraçada que remete à operosidade desses animais que pertencem, segundo a Wikipédia, “à família Formicidae, o grupo mais numeroso dentre os insetos” e que são “seres particularmente interessantes porque formam níveis avançados de sociedade, ou seja, a eusocialidade. Todas as formigas, algumas vespas e abelhas são considerados como insetos eusociais, fazendo parte da ordem Hymenoptera. As formigas estão incluídas em uma única família, Formicidae, com 12.585 espécies descritas até 2 de setembro de 2010, distribuídas por todas as regiões do planeta, exceto nas regiões polares. As formigas são o gênero animal de maior sucesso na história terrestre, constituindo de 15% a 20% de toda a biomassa animal terrestre…”.
”.
Curioso, ainda mais curioso, é que tenha também se autoexcluído dessa relação, usando assim dois pesos e duas medidas, o que o desqualifica como pesquisador. Afinal, quem não é estranho aos círculos culturais e artísticos da cidade, não ignora o seu apelido e muitos sabem até que ele o deve à verve do bispo de Taipu, inspirador de meu D. Ignatius. O príncipe da Igreja o batizou de “Mar de Lama”, em alusão ao seu livro de estreia, “Uma Gota de Sangue num Mar de Lama”, livro que prenunciou o surgimento de um fenômeno das letras provincianas. Por sua vez, tal bispo responde por Melosso, evidentemente corruptela de Mela-o-osso, ou o diabo saiba lá o quê!
Franklin Jorge, diretor de Redação da Navegos, é autor dos livros “Ficções Fricções Africções” (Mares do Sul; 62 págs.; 1999), “O Spleen de Natal” (Edufrn; 300 págs.; 2001), “O Livro dos Afiguraves” (FeedBack; 167 págs.; 2015), dentre outros.
ANTONOMÁSIA O escritor, pesquisador e folclorista potiguar Gutemberg Costa, autor do livro “Dicionário Papa-jerimum – Apelidos & Afins” (Argos; 2001), que traz cognomes de artistas, políticos e religiosos do Rio Grande do Norte; o também pedagogo e bacharel em direito ainda é autor dos títulos “Profetas do Nordeste” (Clima; 1994), “A Presença de Câmara Cascudo na Literatura de Cordel” (Capitania das Artes; 1998), “Dicionário de Cordelistas – Rio Grande do Norte” (Queima Bucha; 2004), “A Presença Feminina na Literatura de Cordel do Rio Grande do Norte – A Mulher Na Memória do Folheto Potiguar” (Editora 8/Queima Bucha; 2015), “Antigos Carnavais da Cidade do Natal – Volume I: de 1875 a 1945” (Editora 8; 2016), “Breviário Etílico, Gastronômico e Sentimental da Cidade do Natal – Memória da Boemia e Gastronomia Natalense (1975-2019)” (Editora 8; 2019), dentre outros