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De como surgem os livros

Fundador de Navegos e Publisher do selo editorial Feedback, detentora dos direitos intelectuais desta revista que se vai afirmando entre nós como uma referência cultural digna de nota, Franklin Jorge relata aqui como surgiu a ideia de escrever a história de suas leituras.

*Franklin Jorge

O multimilionário Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), poeta e escritor medíocres da segunda geração do Modernismo, proprietário da Orquima e da Editora Schmidt, íntimo de presidentes civis e militares, sugeriu certa vez ao escritor Antonio Carlos Villaça que  escrevesse a história de suas leituras, que ele as publicaria, porém o autor de O nariz do morto e de O livro de Antônio – obras capitais do gênero memorialístico entre nós – declinou dessa missão e, passados muitos anos, a delegou a mim tal ideia.

Achei bem árdua, a princípio, a edificação da história de minhas leituras e logo o disse a Villaça, que insistiu nessa ideia, dizendo que eu já teria um longo caminho andado, pois desde jovem cultivava o hábito das marginálias, faltando-me a mim apenas o esforço de organiza-las de maneira coerente. E, para reforçar o que dizia, abriu diante de mim e do terapeuta holístico  Wilton Gayo – que me acompanhava nessa visita que lhe fazíamos na sede do PEN Club do Brasil, na Praia do Flamengo – o exemplar do Livro de Antônio que me acompanhara em meu périplo amazônico, em brochura adquirida na Livraria da Rose, em Porto Velho. Abriu-o numa página, ao acaso, e leu trechos que eu sublinhara e anotações que fizera, inspirado pela leitura desse livro embebido em angústia e humanismo.

-Você lê fazendo anotações, parafraseando o autor, sublinhando e destacando trechos e frases que lhe despertaram a atenção –, disse. E passando para outras páginas, que também leu em voz alta, afirmou com convicção: – Estou vivendo um momento especial; uma nova experiência, lendo o que em meu livro lhe pareceu digno de comentário e paráfrases… Nunca me ocorreria justapor tais frases e criar uma terceira sentença, inteiramente autônoma em relação ao que escrevi originalmente. Você seria a pessoa certa para escrever esse livro que Schmidt esperava que eu fizesse…

Com o passar do tempo tais palavras proferidas por Villaça fizeram-me pensar sobre essa ideia que se foi consolidando ano após ano. A princípio temi essa empreitada e o disse claramente, por achar-me incapaz de enfrentar tal desafio. Pensei, depois, que podia escrever esse livro, bastando dispor dos livros de minha biblioteca e das anotações de toda uma vida inspiradas pela leitura. Alicerçado em anotações, transcriações, paródias, paráfrases, repentes e iluminações que forjariam a meu ver um livro de um gênero singular.

– Sistematize suas notas  e escreva –  assim falou o Cardeal das Letras,depois de ler mais duas ou três das minhas intervenções de leitor em sua obra, esse O livro de Antônio que eu levara comigo parra pedir-lhe que o enriquecesse com um autógrafo. – Você terá matéria para uma biblioteca, insistiu, dominado por esse entusiasmo que caracteriza o talento.

Anos depois, dei esse segundo exemplar do mesmo livro que Villaça autografara duplamente para mim; na primeira edição distinguiu-me de maneira generosa, ao nomear-me de “luminoso amigo”. Dei esse segundo volume, pelo que me lembro, ao grande cronista da terra de Areia Branca, José Nicodemos, um villaciano incurável, por muitos anos secretário do dicionarista e filólogo Antenor Nascentes. Mais recentemente, morando pela segunda vez em Mossoró, tivemos José Nicodemos e eu vários encontros prazerosos nos quais evocamos o grande autor de O Nariz do Morto, que ambos admiramos desde que surgiu como um acontecimento saudado por Carlos Drummond de Andrade.