• search
  • Entrar — Criar Conta

De olho n´O velho debaixo da cama

Fundador de Navegos começa a escrever romance à clef, inspirado em personagens da vida cultural e política que conheceu no curso da sua existência, com título e subtítulo – O velho debaixo da cama/ romance para leitores cultos e degenerados. uma espécie tardia de Decamerão potiguar que certamente provocará tremor e temor.

*Franklin Jorge

[email protected]

Recentemente, referi aqui, sugestão que recebi de um leitor de escrever um romance destinado a leitores cultos e degenerados que ficcionalizasse a vida secreta e sórdida da cidade, como fez nos anos de 1920, em Disfarçados, Lucas da Costa [1886-1925, foto em destaque],  jornalista culto e elegante e próspero comerciante, que expôs de maneira cifrada e espirituosa os bastidores de uma cidade movida por uma sociedade aparentemente decente. Deu-me até um subtítulo, “romance para leitores cultos e degenerados”, prognosticando que um livro desses seria sem duvida um best-sellers. Confesso que fiquei chocado com a a estranha sugestão desse leitor anônimo e arguto.

Em seguiram conversando com um amigo, Doutor em Letras ele empolgou-se com a ideia e brindou-me com o titulo, O velho debaixo da cama, posto que, como fonte, o macróbio de boa memória é um perigo ambulante, por constituir uma fonte inesgotável de lembranças e histórias, como a da jornalistas que gozava no tronco em chalé do Litoral Sul, a cafetina amadora que alugava a sobrinha ao apetite dos poderosos. Ele viu e ouviu tudo, portanto sabe que Dona Adalgisa adornava de chifres a cabeça de seu marido, motorista de uber; o desembargador ia queimar a rosca em João Pessoa ou no Recife e o deputado que se dizia chamar-se João Paulo, para não ser descoberto.

Sem esquecer a velhota que, na sessão da tarde, num cinema que não existe mais, masturbava adolescentes e os limpava com seu lencinho de linho bordado, o poeta invejo que ao se tornar senil amassava a própria bosta e a comia com gulodice, o crítico que intentou estuprar a própria irmã, o sebista seboso, a secretária a caçar machos em redes sociais e seu assistente a vender ao governo antiguidades falsas, o artista plástico psicóptico e pedófilo professor em escolinha de arte; enfim, toda uma galeria de seres que mereciam estar mergulhados em algum círculo do inferno dantesco, comerciante que abusava de meninas de rua trocando um prato de comida por uma boas fellatio, hoje consagrado por autoridades municipais…

Pois bem. Embora considerando-me incapaz de praticar o gênero, ouvi de um amigo que não havia de faltar-me inspiração e que o trabalho maior seria o de organizar tudo, pois a memoria está viva e, como ficcionista, eu só teria de seguir uma certa lógica. Pois não é que fui convencido a pôr tudo isto sob a forma de ficção, a vida secreta da cidade dessa cidade antigamente chamada “dos Reis”?

Minha terrível dificuldade consiste, à primeira vista, no número de personagens e a escabrosidade das peripécias que certamente darão o que falar, especialmente quando a esposa flagra o advogado sendo enrabado pelo jardineiro, o governador que manda matar sem sofrer investigação, o político que bota a mão na cumbuca, o monsenhor que viu a coisa preta nos jardins do seminário, entre outros seres e fatos capazes de nos arrancar o riso, pois, segundo pude observar, ri melhor quem ri primeiro. E, repetindo os latinos, é rindo que se castigam os costumes (ridendo castigat mores), que consta do Auto da Barca do inferno, de Gil Vicente, representada na Câmara da Rainha Dona Maria.

O risco é estender-me demasiadamente no assunto, como agora, quando seria suficiente anunciar sem delongas que resolvi aventurar-me no gênero à clef, fazendo o velho parecer novo, segundo o engenho da arte corrompida pelos costumes. Todo esse preâmbulo para anunciar que me empenho em escrevê-lo com as tintas da galhofa e da irresignação.

Personagens é que não nos faltam.