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Desejo e ideal em Morte em Veneza

Articulista de Navegos relê obra-prima de Thomas Mann e conecta o leitor com a escrita fáustica do Nobel alemão, um dos clássicos do nosso tempo.

*Francisco Alexsandro Soares Alves

A beleza sempre cobra seu preço. E o preço da beleza é a destruição do outro. Por trás do aço do reflexo que embevece o Belo, Medusa aguarda os deslumbrados em seu jardim apolíneo. A beleza quando alça voo ante nosso olhar, petrifica nosso desejo na memória. E o tempo passa, e então percebemos o outro relance do olhar da górgona, passamos juntos, e a beleza, toda ela, permanece petrificada no passado do ser enquanto o homem, barro, apodrece.

O preço da beleza é a destruição do outro. Violência. Rapto. Loucura. Apolo e Jacinto, e Zéfiro. Zeus e Ganimedes. Narciso. Helena de Tróia. Adriano e Antinoo. É lícito contemplar o belo, e ao mesmo tempo, tolher os desejos que comandam o resto do corpo? E mesmo que seja lícito uma contemplação passiva, por que seria isto desejável? Tenhamos a igual determinação de Sêmele diante de Zeus e paguemos todo o preço desta glória, Adrian Leverkühn e Mefisto. Há um mar tranquilo que se estende e nos convida para navegarmos, e todo o mar tranquilo tem seus tubarões. A beleza é o preço.

Thomas Mann (1875-1955), escreveu A morte em Veneza em 1912. É uma novela dividida em cinco partes de profundo caráter filosófico. A obra gerou um filme de Luchino Visconti (1906-1976) de 1971 e também uma ópera de Benjamin Britten (1913-1976) de 1973. O escritor Gustav von Ashenbach está passando por uma crise criativa e resolve viajar. Percorre cidades europeias até que resolve parar em Veneza. Uma vez na cidade, Ashenbach é perseguido pelo ideal de beleza encarnado à perfeição em um garoto de 14 anos chamado Tadzio. Tadzio é a personificação do Belo em si. Ashenbach sente seu mundo desabar. Como escritor, ele é reconhecido pelo apuro técnico, pela rigidez da forma e racionalidade. E quando contempla o garoto, de beleza ímpar, tudo isso vem abaixo e Ashenbach mergulha em um mar de caos que nunca experimentou antes. Ashenbach é apolíneo. Tadzio é sua complementação dionisíaca. Há um caráter erótico sem dúvida nessa relação. Ashenbach tem visões perturbadoras de intenso fervor carnal e sensual. O garoto o enlouquece em todos os níveis. A questão corporal é importante porém não podemos deter nossa leitura à apenas essa perspectiva. Tadzio é Ganimedes, e é Antínoo. Mas também é um ideal estético e é nesse ponto, filosófico, que Mann celebra esse amor entre o maduro Ashenbach e o garoto Tadzio. A medusa de Tadzio petrifica o desejo de Ashenbach que recorre a Platão para entender a magia que o corpo do garoto lhe provoca. Há citações imensas retiradas de Fedro, obra platônica. Porém o escritor, tão racional, ainda não percebe o verdadeiro significado de Tadzio.

Uma técnica recorrente em Mann é a do leitimotiv, motivo condutor, em alemão. A técnica é oriunda da música e é a base estrutural dos dramas musicais, criação de Richard Wagner (1813-1883). Mann sempre foi um intenso amante do drama wagneriano, e assim como muitos literatos de sua geração, Mann absorveu essa técnica composicional transpondo-a para a literatura. Um motivo condutor é uma pequena célula musical, de um ou quatro compassos, no máximo, e quanto menor melhor, que é usada para identificar ações, personagens, pensamentos e objetos no drama musical. Para cada personagem há uma célula musical própria que é citada cada vez que o personagem está em cena ou dele se faz referência. Alguns críticos consideram mesmo a invenção wagneriana de cunho mais literário do que musical, o que gerou também virulentas críticas contra ele em sua época, não é de se admirar que tantos literatos tenham se banhado nesse mar.

Na Morte em Veneza, Mann elabora uma série de motivos condutores, alguns mais evidentes, outros bastante refinados. Porém mesmo estes mais evidentes são tratados com tal sofisticação estilística, que é necessário uma atenção maior à cena para que o inconsciente desperte-o. O principal leitmotiv é o da morte. Desde o primeiro momento, quando Ashenbach se atormenta com a passagem de um estranho personagem em frente a um cemitério, a morte está presente. A passagem de Ashenbach pelos canais de Veneza é a viagem ao Aqueronte e o gondoleiro, Caronte. É espetacular o diálogo que Ashenbach mantém com um gondoleiro. O escritor não deseja pagar pelo serviço prestado nem um centavo, pois considerou o serviço mal feito. O gondoleiro, simplesmente responde: “Porém tu pagarás”. Outra aparição desse leitmotiv é a banda de música que toca no hotel onde Ashenbach se hospeda. O escritor observa que os músicos têm os dentes podres e careados. A própria Veneza é a morte final. A cidade, tão bela, também é degradada dia após dia pela água do mar, que cada vez mais invade as ruas. Anualmente, Veneza submerge ante essas águas. A cidade possui um odor forte desagradável e muitas de suas ruas são eternamente molhadas. Veneza também é a morte porque um surto de cólera toma a cidade momentos após a chegada de Ashenbach. Para definir a beleza, Mann também repete períodos frasais em momentos diferentes da novela.

Se Veneza é a morte. Tadzio é a vida, porém uma vida que tende inexorável para a solidão e a morte. Porque Ashenbach é um personagem frequente em Mann – o do artista que não se adapta ao social. Mann repete esse tema em Tonio Kröger, na obra de mesmo nome e sobretudo em sua obra máxima, Doutor Fausto, através do personagem central de Adrian Leverkühn. Os desejos de Ashenbach, em qualquer nível, são contra a sociedade. Tadzio é a vida na exata proporção em que é um ideal de arte, mais ainda, em que personifica o modelo supremo da beleza, do Belo em si. É por esse ideal que Ashenbach sacrifica seus últimos instantes de vida. Ele morre contemplando o corpo maravilhoso do garoto, que está seminu brincando na praia, em meio aos movimentos ardentes do mar. Tadzio, que durante toda a novela percebeu os olhares de Ashenbach,e os aprovou, agora, ao ver o escritor agonizando diante de si, sorri. Sorri e, levando o dedo indicador direito ao alto, mostra o caminho da morte. Sublimação. Morte estética. O preço derradeiro do Belo.

Durante a obra, em muitos momentos, Ashenbach tem a chance de tocar Tadzio, porém sempre evita o toque. Apolo. O escritor se contenta na contemplação passiva e serena do objeto de seu desejo e ideal estético. O máximo que afirma para o garoto, de maneira sôfrega, porém ainda discreta, é um “Eu te amo”. Que pela ausência de toques, tanto do escritor no garoto quanto deste naquele, permanece como na esfera do ideal platônico. Ashenbach não mergulha no dionisíaco que Tadzio representa. Ao menos não completamente. Sempre foi racional. E este é um dos questionamentos filosóficos que a atitude de ambos encerra: se a arte é corporal, há sentido em não se entregar no corpo, na carne, ao desejo que o Belo em si provoca? Nietzsche versus Platão. Desejo e ideal – o que o Belo nos cobra…?