*Franklin Jorge
Em artigo anterior evoquei um encontro com o poeta Renato Caldas, no Bar de João Nogueira, após a celebração de seus 80 anos, que pensei seria o último de uma cadeia de bate-papos, geralmente na calçada de Dona Gena e Doutor Nelson Montenegro, à Praça Getúlio Vargas, no Assú. Todas as noites, durante mais de 50 anos, um grupo se reunia lá, antes e após o jantar, para manter a conversa em dia e lembrar fatos e personagens do passado.
Renato era frequentador assíduo, antes de se recolher forçado pela doença ou achaques da velhice que o prenderam em casa durante seus derradeiros anos de vida. Quando o reencontrei, após alguns anos sem vê-lo, ao saber que completara oito décadas de vida, dei-me conta que nunca o entrevistara, não sei porque; talvez por causa da proximidade que nos faz às vezes adiar as coisas, no caso presente, essa entrevista que faltava aos meus escritos sobre a cultura da cidade que por tanto tempo, desde a minha infância e adolescência, tanto me encantara pela riqueza de seus faustos históricos pouco conhecidos ou conhecidos apenas por uma minoria privilegiada que tinha acesso à informações controladas por uns poucos, como o historiador Chisquito Amorim, possuidor de um arquivo cuja origem remontava ao primeiro Wanderley radicado no Assú, Gonçalo Wanderley, o senhor da Baviera, filho do Capitão da Guarda privada do Príncipe de Nassau, Governador holandês no Brasil Colônia.
Como se leu no artigo anterior, após uma conversa que se prolongou por pouco mais de duas horas, ao pé da escada no reservado do bar mais famoso da cidade, misto de bomboniere e adega, por muitos anos uma espécie de clube frequentado pelas famílias mais abastadas e tradicionais do Vale do Açu. Despediu-se abruptamente, ao lembrar-se que era esperado pela esposa, Dona Fausta, para o almoço servido ao meio-dia. Interrompera nossa conversa justamente quando começava a perguntar-lhe sobre a vida boemia que por algum tempo levara na Ribeira, tradicional bairro natalense, onde explorara um bar que um tempo terá sido o endereço mais famoso dos boêmios do seu tempo, frequentado por poetas, jornalistas, artistas de teatro e modinheiros.
Durante nossa conversa na manhã calorenta, lembrou da atenção e do carinho que lhe tem sido dispensado por Lô, João Marcolino de Vasconcelos, rábula inteligentíssimo e um bom leitor, principalmente, de poesia e do teatro moderno, grande incentivador do Escotismo no município e da banda de música, patrimônio cultural da cidade que preza mais o status do que a essência das coisas. Uma cidade que faz da poesia objeto de propaganda, mas ignora ou menospreza os poetas, como João Lins Caldas e João Fonseca, que embora escreva pouco é autor de alguns poemas maravilhosos que merecem ser lembrados pela posteridade.
O poeta, porém, logo se arrependeu de sua recusa. Após sua saída, às pressas, permaneci por algum tempo conversando com Cândida sobre o aniversário de Renato e o lançamento de Ao pé da escada, livro que mal se sustinha em pé, organizado por João Marcolino de Vasconcelos, o Lou, o último companheiro de boemia de Renato, com quem bebia todos os dias no reservado de João Nogueira. Ao chegar à casa de Dona Gena e dr. Nelson Montenegro, onde me hospedava, recebi de minha querida anfitriã um recado do poeta, que mal chegara em casa despachara um portador, para comunicar-me que ele me receberia imediatamente após o almoço, para expandir a conversa e responder à minha curiosidade sobre sua vida de boêmio impenitente na Ribeira.
Fazia um calor infernal quando cheguei à sua casa, aí por volta das 13 horas ou pouco mais. O poeta, um tanto nervoso e impaciente, recebeu-me sem camisa, alegando a excessiva canícula e o fato de ser a sua casa um cubículo atulhado de móveis e artefatos decorativos do gosto de Dona Fausta que, segundo ele, não podia ver um bibelô de louça que o comprava e arranjava um jeito de alojá-los em sua casa.
Conversamos na pequena sala de visita com o seu conjunto de sofás em estilo funcional, releitura popular do Bauhaus alemão que se propagou pelo Brasil afora, a partir dos anos de 1960. Havia uma mesinha de centro cheia de estatuetas de louça, algumas representando animais domésticos e um grande jarro com um bouquet de flores de plástico que não podiam faltar nas residências de quem dispunha de emprego regular ou algumas posses. Renato era funcionário da Justiça e fazia a medição de terras, como o fez, no inventário após a morte de meu avô postiço.
Ainda antes de nos sentarmos, pediu-me desculpas por sua grosseria, ao se despedir, naquela manhã, de repente, ao recusar-se a falar da sua vida boemia e dos boêmios natalenses com os quais convivera, como Zé Areia, Jayme Wanderley, Othoniel Menezes, Diolindo Souto e os mais célebres e prestigiosos modinheiros que se compraziam em botar música em versos dos poetas daquela época.
Disse que a velhice o deixara impaciente e, por outro lado, doía-lhe recordar os fatos de sua mocidade, que considerou desperdiçada. Se não fosse o senador Dinarte Mariz, hoje, estaria passando fome. Mas ele lhe dera esse emprego que lhe garantira a aposentadoria e supria, desde então, sua velhice do necessário para viver com dignidade. Por isso, explicou, ridicularizei tanto Aluizio Alves, seu pupilo e depois adversário na política, em versos facetas, como estes, que escrevi quando o ex-governador, o mais progressista de nossos governadores, lançou o seu livro Sem ódio e sem medo:
Já descobri o segredo
Do demagogo Lulu:
Quem não tem ódio nem medo,
Certamente não tem cu.
Arrependia-se o poeta do muito que escrevera, pois, além da fama, só lhe trouxera desgostos e aborrecimentos, razão pela qual se recusara a falar do passado. Mas, ao voltar para casa, depois do nosso agradável reencontro, vinha pensando no quanto fui grosseiro com quem não o merecia e, pensando em seu pedido, ocorreu-me a lembrança de algumas trovas produzidas por poetas desse meu grupo de boêmios que se reuniam no bar que mantive, por algum tempo, na Ribeira. Não vou dizer versos meus, mas desse grupo que está completamente esquecido há tempos, como um tributo à sua curiosidade e ao seu empenho de dar vida aos mortos….Trouxe papel e lápis? Então, anote… Anote…
Anotei o quanto pude e o calor permitiu. A certa altura percebi que o poeta estava coberto de suor e minha camisa e calça haviam-se colado em meu corpo. Interrompi a sessão, alegando que se continuássemos, derreteríamos. Ele concordou e me acompanhou até o terraço, quando o vi, sem camisa e molhado de suor, pela última vez.
Foto de Renato Caldas e Franklin Jorge, Assú, 1994.