*Franklin Jorge
Há muitos anos aureolado pela fama, Emiliano Di Cavalcanti não economizava energia e disposição para as coisas boas da vida. Morava em um duplo e espaçoso apartamento à Rua do Catete, 222, um andar acima da escritora mineira Nair Starling, de belos e translúcidos olhos azuis que me lembravam duas luminosas águas-marinhas.
Quase não saia mais de casa nem recebia visitas, exceto de um grupo de exuberantes e ruidosas mulatas que costumavam visita-lo regularmente. Chegavam aos bandos para assistir ao velho artista, rindo e conversando num tom acima do que recomendaria a boa norma de educação.
Pintor prolífico e irregular, impôs-se Di Cavalcanti no mercado de arte de seu tempo como uma grife, ao levar para o interior das casas burguesas a sensualidade viciante do samba e dos morros cariocas que decantou em numerosos quadros e murais. Destacou-se também como retratista, pintando as socialites e personalidades como o o Presidente Juscelino Kubistchek, que frequentava seu ateliê e se deliciava com o relato de suas aventuras. a mim me interessava sua incidental participação na Semana de Arte |Moderna de 1922. Não rejeitava encomendas, tornando-se frequentemente repetitivo. Era prova de sucesso e distinção adornar paredes com quadros seus.
Dispondo de uma boa conta bancária, entregara-se em sua velhice a uma espécie de ludismo pagão a que não podiam faltar mulheres e música. Chegava a incomodar os vizinhos de baixo, que reclamavam principalmente dos ruídos provocados pelos tamancos sobre os quais se equilibravam suas alegres visitantes que algumas vezes deparei à espera ou entrando no elevador. algumas, para mexer com o tímido que eu era, agarravam-me, beijando-me e prometendo em tom brincalhão levar-me um dia ao morro para comer ostras frescas. Olha!, dizia outra, rindo-se. Geeeente, ele corou como um camarão!
Era sem dúvida um bando esfuziante, alegre e festeiro que vivia às gargalhadas, gozando a vida e infundindo uma nova alma ao velho olímpico que engrandecera a mulata ao introduzi-la na pintura moderna como um leitmotiv pictórico. Em Deauville, cenário proustiano, pintou vários retratos da atriz e modelo Marina Montini que se tornariam emblemáticos da nossa brasilidade.
Raramente o víamos fora de seu apartamento, na verdade, àquela altura de sua vida, um mundo dentro do mundo. Nessas ocasiões mostrava-se sorridente e amável, exuberantemente amável e galanteador. Beijava a mão de Vovó Starling – era assim que ela queria que eu a chamasse e em contrapartida me apresentava a todos como o seu neto – para a surpresa de muitos que não sabiam que ela era avó. Também me fez chamar o marido de Vovô Carlos; um homem grandalhão e amável que lhe fazia todos os gostos e encontrava prazer em tudo. Aposentado como auditor da Alfândega, achava graça da galanteria do artista cheio de charme que sabia fazer-se agradável.
Em duas ou três ocasiões, a pedido de minha avó honoraria, estive em seu apartamento à noite, aí por volta das 22 horas, para pedir-lhe que contivesse o entusiasmo de suas mulatas que ao andar sobre tamancos faziam grande um barulho que incomodavam nossos serões que incluíam a leitura de autores mineiros e trovadores satíricos, escolhidos por Vovó Starling, aos quais acrescentei autores nordestinos e potiguares, como Myriam Coeli, João Lins Caldas, Jorge Fernandes e crônicas de Edgar Barbosa, além de incipientes textos meus que Vovó Carlos pedia-me fossem incluídos nessas récitas.
Tínhamos a impressão que as mulatas dançavam para Seu Di, como o chamava o porteiro pressuroso e discreto. Da última vez o artista prometeu que tomaria providencias necessárias e que nunca mais seriamos incomodados por suas convidadas. Cumpriu a palavra. Adquiriu vários pares de pantufas, segundo pediu que nos informasse o porteiro. De volta a Natal e escrevendo para o quinzenário Jornal dos Municípios,lembrei-me dessas ocorrências e em carta pedi a Vovó Starling que escrevesse algo a respeito, o que ela fez prontamente, mas sem a riqueza de detalhes que eu esperara de um depoimento seu. Esse curto texto está publicado no jornal de Carlos Lima.
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