*Valterlucio Bessa Campelo
Não trata o atual debate público brasileiro, como podem pensar apressadamente alguns tolos e cretinos, de mera disputa entre personalidades, estilos de governo ou sequer entre projetos sociais e econômicos díspares. Mas de uma luta que se replica no mundo inteiro, opondo as pessoas que se sentem e se pretendem livres e aquelas que apenas cedem ou, por sua ideologia malsã, oferecem o pescoço à coleira apresentada pelos poderosos promotores de uma nova ordem. A peste chinesa serve, neste sentido, de plataforma para que determinadas autoridades desatem suas vocações autoritárias, e imponham sobre o cidadão um poder que não lhes foi conferido pelo voto ou pela Lei.
Vivemos um mundo distópico que exige, como reação de cada homem e mulher livre, muito mais que indignadas mensagens de celular, “lives” diárias, ou sábias análises em sites de notícias. Não podemos perder sem verdadeiramente lutar, nos render ao totalitarismo sem enfrentá-lo com toda força e tirar-lhes a máscara que encobre sua face sórdida. Devemos, pela liberdade, ir às ruas e, direta ou indiretamente, por qualquer via, mandar para o esgoto as tentações despóticas de quem quer que seja.
Presenciamos um momento “Orwelliano” da vida nacional, de controle da verdade, de censura de nossas opiniões e de punição liminar de quem não entra no “supremo bonde progressista”. Nesta quadra tenebrosa em que pairam sobre todos nós a insegurança, a dúvida e o medo, provocados por inúmeras e poderosas investidas sobre o direito à livre expressão, é necessário que declaremos o nosso mais profundo desprezo a toda espécie de tirania. Indico:
– A dos políticos, dos que pedem e recebem do povo a confiança para que atuem em sua defesa, governem e legislem em seu benefício, mas cuidam somente de suas próprias famílias, seus negócios e ideologias, algumas tão funestas quanto totalitárias, desprezando a liberdade.
– A dos juízes, daqueles que por décadas se dedicam laboriosamente ao Direito, mas quando alcançam o alto da escadaria, acomodam-se em tronos eternos, apropriam-se da verdade, escolhem na balança sempre o lado do coração e decidem com desprezo à liberdade.
– A da ciência, dos cientistas endeusados em altares de falsos consensos sobre temas globais, atribuindo às próprias conclusões caráter irrefutável, negando o questionamento mais elementar, fazendo-se desse modo anti-ciência e desprezando a liberdade.
– A do dinheiro, de todos os que alcançando grande riqueza, apoderam-se do Estado, corrompem seus agentes em todas as esferas, descumprem as leis, impõem criminosamente seus interesses, destroem sem critérios os bens naturais, dão como invisíveis os pobres e desvalidos, e desprezam a liberdade.
– A do ensino, dos professores e alunos que dançam a música do saber nas universidades, como esponja absorvem doutrinas, teorias e pesquisas, olham com lupa para o passado e o presente, aprendem sobre governos totalitários e, mesmo assim, desprezam a liberdade.
– A dos advogados, daqueles que juram solenemente “defender a liberdade, pois sem ela não há justiça”, mas atraídos pelas chances de enriquecimento e poder, traem seu juramento, vendem suas convicções, aliam-se aos corruptos, sustentam suas baixezas e desprezam a liberdade.
– A dos religiosos, dos clérigos de toda ordem e crença, que em nome de um Deus prometem abrir-nos o caminho da fé e guiar-nos no percurso do bem, mas não resistem ao reluzir do ouro, transmutam-se em reles mercadores e agem com desprezo à liberdade.
– A da imprensa, dos seus editores, jornalistas, analistas e de todos aqueles que no exercício da comunicação renunciam ao seu papel crucial na democracia, e transformam a informação em meio para achaques, chantagens, perseguição e manipulação em desprezo à liberdade.
– A da cultura, dos artistas e intelectuais que sabendo do infinito valor da beleza, das letras e de todas as artes, se deixam levar pela ambição e narcisismo, algemam-se ao “politicamente correto”, e põem-se vulgarmente em desprezo à liberdade.
Em certo trecho (Cap. 58), o grandíssimo Miguel de Cervantes Saavedra diz em sua obra prima “Dom Quixote”, de 1605; “A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que aos homens deram os céus; com ela não podem igualar-se os tesouros que encerra a terra nem que o mar encobre; pela liberdade assim como pela honra pode-se aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode vir aos homens”.
Nada pode ser mais importante que a liberdade. Com ela, lutamos, ainda que em desvantagem; nos expressamos, ainda que sejamos incertos; vivemos, ainda que surjam moléstias; doamos, ainda que tenhamos pouco; seguimos, ainda que possamos cair; servimos, ainda que estejamos fracos; aprendemos, ainda que se torne difícil; crescemos, ainda que fique tardio e penoso.
Às ruas!
FOTO Águia, fotografia do canadense Steve Biro