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Do estilo artístico como uma enfermidade

Escritor de língua espanhola pondera que quem escreve sem muito estilo produz uma página compreensível,  mas inerte. O estilo literário dá vida à página, cria a ilusão de que ela existiu e continua existindo; é certamente a forma mais bem-sucedida de respiração artificial.

*Juan Viloro

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Trompetistas e saxofonistas sabem que sua música depende da maneira como respiram. Não são suas mãos que guiam os sons, mas seus pulmões. Certa vez, conheci um músico de jazz que dominava a “respiração circular”: ele podia tocar sem parar, expirar enquanto inspirava. Esse virtuosismo me admirava, mas me parecia um circo; é a música empobrecida, que não pode ser torrente e depende de silêncios.

O estilo literário é definido da mesma forma; importa o que você cala, dosa, freia. Esse efeito não pode ser visto ou ouvido, mas deve estar presente, e acaba sendo a marca de um autor, o que permite reconhecê-lo em uma frase. Há algo de involuntário e muitas vezes desajeitado no gesto; as palavras só conseguem se encaixar assim.

Se o autor encontrar aquele tom genuíno, ele pode dizer quase tudo, embora esse tom venha da hesitação e da impossibilidade de falar de outra forma. A literatura poderia ser representada como um grande hospital de pneumologia, onde cada paciente tem um sintoma diferente. Dentro Na Montanha Mágica, os médicos procuram o “assobio no pneumotórax”. No hospital literário, cada apito carrega uma melodia diferente.

A ideia do hospital também me atrai porque todo estilo artístico é uma forma de convalescença. A estética surge de fragilidades, fraturas, impurezas. A arte nunca é “bonita” ou “perfeita”. O grande paradoxo da alegria estética é que ela vem de elementos que parecem rejeitá-la: uma perda, uma dor, um desconforto, transcendidos em prazer. Isso se aplica a temas, mas também a técnicas. O artesão aspira a um acabamento impecável e elegante; o artista busca algo mais complexo, bagunça seus materiais, trabalha a partir da incerteza, encontra possibilidades nos erros.

Vista de perto, uma tela costuma ser um emaranhado de cores, mas o pintor calcula o efeito que isso pode causar a vários metros de distância. O que é significativo é que o pintor ordena suas imagens do ponto de vista em que se confundem. Também o estilo literário se alimenta de deficiências, manchas, rasuras. A força expressiva não chega por telefone ou por comunicação divina; consegue-se através dos muitos rascunhos, dos cancelamentos, da falta de jeito transformada em algo comunicável. Falamos melhor depois de um ataque de asma.

Os grandes estilistas (Nabokov, Borges, Rulfo, Faulkner, Proust, Mann, Beckett, etc.) respiram à sua maneira. Quem escreve sem muito estilo consegue uma página compreensível,  mas inerte. O estilo literário dá vida à página, cria a ilusão de que ela existiu e continua existindo; é certamente a forma mais bem-sucedida de respiração artificial.

Juan Villoro
O olho no pescoço. Com Ilan Stavans

Foto: Hemingway em um hospital de Londres
após um acidente de carro (1944)