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Dois Recifes

Colaborador de Navegos traça paralelo entre duas cidades que tocam o seu coração, antevê Natal como uma pequena Recife, mais limpa e higienizada, porem mal-amado por seus habitantes, ao contrario da Capital de Pernambuco.

*Alexsandro Alves

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Durante os anos que morei em Recife, eu costumava ir ao Centro da cidade para comprar quadrinhos e livros no calçadão que se iniciava no Café Savoy, na Avenida Guararapes e se prolongava até ao Cine Trianon, na esquina da Guararapes com a Rua do Sol. Ficavam em cima de mesas de madeira que se estendiam pelo calçadão, sem muita ordem aparente, à semelhança do que havia na Avenida 10, no Alecrim, na década de 90. Às vezes, eu descia do ônibus algumas paradas antes do Centro, ainda na Av. Conde da Boa Vista, no bairro de mesmo nome, para cruzar a pé, a Ponte Duarte Coelho.

Nesse bairro, na Rua Sete de Setembro, havia a Livraria Livro 7, a maior da cidade. Nela, se podia encontrar edições estrangeiras “originais”, “americanas”, como eu gostava de dizer, dos quadrinhos traduzidos e lançados pela Abril e pela Globo. Nos arredores, na Rua do Hospício, se localizava um dos mais lindos cinemas da capital, o Cine Veneza, um dos muitos cinemas de rua de Recife. Hoje existem apenas três, o São Luiz, tombado como patrimônio histórico pelo Governo do Estado, em art déco, e outros dois, pertencentes à Fundação Joaquim Nabuco, no Derby e em Casa Forte. O São Luiz possui piso de mármore branco, seu telão é adornado por vitrais nas laterais, no teto, tapeçarias se cruzam, as paredes têm revestimento em jatobá e as luminárias são de bronze.

A Ponte Duarte Coelho, de onde o Galo da Madrugada desperta o recifense para os festejos de Momo, gigantesco e imponente sobre o Capibaribe, irmanando mais de um milhão de pessoas que entoam, sob a égide de Momo: “Vem pessoal, vem moçada, carnaval começa no Galo da Madrugada”. Quando caminhava pela ponte, parando no meio, olhava para trás, para a Rua da Aurora, e seguia as linhas retas art déco do Cine São Luiz. Entrei poucas vezes nesse cinema e apenas para filmes “censura livre”: mudei-me de Recife aos 14 anos de idade.

Ao final da Duarte Coelho, seguindo o curso do Capibaribe, a Rua do Sol, ao atravessá-la, à minha frente, a Avenida Guararapes. Saudavam-me o prédio dos Correios, à minha esquerda, e o Cine Trianon, à minha direita. Me dirigia ao Savoy, no Edifício Sigismundo Cabral. Não entrava. Mas achava linda e elegante a fachada de vidro, por isso sempre desejava passar em frente ao café. O Savoy era frequentado, em seus anos de glória boêmia, por Ariano Suassuna, Capiba, Ascenso Ferreira, Gilberto Freyre e por outros famosos e anônimos. A poucos metros do “Grande Savoy”, conforme ostentava a fachada do café, ficava a Praça do Diário, que ainda existe. À noite, nessa praça, perambulava uma fauna indomesticável, personagens de canções de Roberto Müller.

O Centro de Recife, o bairro Santo Antônio, é uma ilha. Caminhando sempre à esquerda, pela Rua do Sol, encontramos a Ponte Santa Isabel a alguns metros da Ponte do Limoeiro, onde o Capibaribe se torna o Beberibe.

A Ponte Santa Isabel é uma continuação da Rua Princesa Isabel. Quem cruza a Santa Isabel, em direção ao Centro, encontra um dos mais lindos e significantes conjuntos monumentais de Recife. Localizados na Praça da República: o Palácio do Campo das Princesas, sede do Governo de Pernambuco, o Palácio da Justiça, o Teatro de Santa Isabel e uma série extraordinária de esculturas de deusas romanas, de 1864. Também compõe essa rica monumentalidade, esculturas de figuras históricas, como Maurício de Nassau, literárias, como Augusto dos Anjos e em homenagem à Revolução de 1817 e ao projetista da praça, o francês Louis Léger Vauthier, essas obras são mais recentes.

Em frente ao Palácio Campo das Princesas, está plantado um baobá secular, que foi fonte de inspiração de Antoine de Saint-Exupéry para “O Pequeno Príncipe”, assim me dizia minha mãe. O Teatro de Santa Isabel é um dos exemplos mais perfeitos de arquitetura neoclássica no Brasil. Foi obra de Vauthier. O Palácio da Justiça, com sua cúpula de 45 metros, a mais alta do país, é de 1930.

Próximo à Praça da República, ergue-se a exuberância rococó da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis. A exuberância e o esplendor barrocos se mostram em seu interior, com a Capela Dourada e o Museu Franciscano de Arte Sacra.

Recife é mais suja do que Natal. Porém é uma cidade com um profundo senso de pertencimento e que cultiva altos valores históricos. O recifense entende sua cidade como um país. Há um orgulho recifense, um modo de falar recifense, que não é apenas questão de sotaque, é para se diferenciar, para marcar território. Quando cheguei aqui, em Natal, me surpreendi com a limpeza da cidade. Inclusive com a limpeza do Centro. Natal parecia ser uma cópia menor e higienizada de uma cidade grande. Ou uma jovem que se enfeita sem saber a origem das marcas que coloca no corpo, porque as pessoas pareciam estrangeiras. Uma jovem que gosta e prefere sempre a novidade, e sempre está alheia. Recife não é assim. Há uma noção de tradição. Um respeito. Quanto à sujeira, já era assim em 1988, hoje deve estar um inferno. Todavia, um celestial inferno. Eu amo Recife.