*Abraão Gustavo
Um certo dia resolvi me tornar um fiscal voluntário de provas para o vestibular, e a primeira coisa que recebi de instrução era que eu deveria seguir o manual, pois lá tinha o informe de horários para começar as provas, horário de saída de candidatos e procedimentos. Havia uma cláusula que falava sobre a postura dos fiscais de sala: NÃO PODE LER LIVROS E NÃO PODE ESCREVER durante a prova; a atenção deveria ser total para o ambiente de avaliação. No começo, não tive noção do impacto daquela cláusula. Porém, ao decorrer do processo, descobri que deveríamos ficar em alerta mais de 5 horas; eu fiquei pensando 10 horas, 5 pela manhã e 5 pela tarde.
Para uma pessoa normal já é muito tempo, imagina para um quase dependente químico da literatura, como eu, passar horas sem ler ou escrever me daria uma abstinência tremenda. Todo escritor sabe que um dia sem ler, escrever ou pensar sobre algo que dê um livro ou uma boa ideia é um dia perdido. Mas comecei a perceber que é a vida e suas experiências reais que inspiram os escritos, não ao contrário.
As horas passavam lentamente naquele lugar, tinha como ofício monitorar os participantes da prova e controlar o tempo. Que chatice, controlar, monitorar, não tenho vocação nenhuma para isso. Enquanto ficava sentado observando os participantes, me lembrei de Dostoiévski e sua prisão forçada na Sibéria, sem ler, sem escrever, acusado de ser um escritor revolucionário frequentador do círculo de Petrashevsky, passou anos de tortura e de reclusão, mas, mesmo sem certeza do futuro, ele escrevia tudo dentro de si. Refleti sobre o quanto de histórias carregamos dentro de nós, em nossas memórias.
Imaginei como os Neandertais, mesmo sem o recurso muito claro da escrita, transcenderam; lembrei dos desenhos feitos em pedras dentro das cavernas na Espanha e cheguei à conclusão de que 10 horas seriam de bom tamanho para eu mergulhar para dentro dos meus pensamentos e escrever algo dentro de mim. Enquanto muitos escreviam no papel para fora de si.