*Franklin Jorge
Ser piloto mercante ou caminhoneiro era o seu sonho, confessa Pedro Grilo Neto, nascido nas Rocas em 1936. Poeta e artista plástico, autor de um conjunto de quase duas centenas de quadros que documentam e perenizam a cidade antiga que ele alcançou ainda coberta de verde e cujas casas modestas tinham grandes quintais que eram pomares e forneciam a merenda das famílias. Em seu tempo de moço, frutas eram servidas como merendas, no intervalo das refeições principais, não como sobremesas. Uma ou outra família mais sofisticada as servia como saladas, encerrando as refeições.
Diabético e submetido a várias restrições terapêuticas, já estava à minha espera no Café São Luiz, onde o conheci em fins dos anos de 1960, quando Natal ainda era a cidadezinha dorminhoquenta descrita no verso de Jorge Fernandes. Estávamos conversando quando um homem, para mim desconhecido, se aproxima da mesa e o cumprimenta, querendo saber como tem passado. – Enquanto houver oxigênio de graça, vou escapando -, responde-lhe num meio sorriso. E, logo em seguida, voltando-se para mim, acrescenta cheio de si que é muito antipático, sobretudo quando se trata de depender de alguém; de políticos e de gestores, culturais, então, nem se fala. Ele não lhes dá o menor cabimento. Sou ainda mais antipático com essa laia. E quando se trata de depender de secretários de estado, eu não vou lá… Isaura Rosado, então, enquanto secretária de cultura, pareceu-lhe extraordinariamente de duas caras e mil palavras. Alguém que usa a Cultura para seus interesses em detrimento dos criadores e artistas que em grande parte vivem de pires na mão.
Numa mesa ao lado, algumas pessoas notórias da cidade conversam e tomam cafezinhos, entre as quais o empresário Marcelo Fernandes e o médico Jair Navarro, que se levantam para cumprimentar-me, a mim, por escrever o que escrevo e por ser o que sou – um jornalista à margem do oficialismo -, o que noutros tempos me envaideceria um pouco, concedo, e já agora não me bate mais a passarinha, afinal tudo tem o seu tempo e o meu certamente passou. Como o próprio São Luiz, que se transformou em um outro café, sob relativamente nova direção.
O Café São Luiz era originalmente aristocrático, segundo Grilo, que o frequenta desde a sua criação a pouco mais de seis décadas de muitos acontecimentos e circunstâncias. Até os anos de 1970 ele foi aristocrático; depois se tornou democrático e, desta fase em diante, virou bagunça. Houve, progressivamente, o afastamento da turma dos literatos, que foi substituída pela turma do futebol e dos jogadores de porrinha, até liberou geral e assimilou a turma dos maus caracteres e decaiu em baixo astral. Agora está se recuperando, foi repaginado em cafeteria e está atraindo novos e diferentes clientes. Em síntese, a fase de café literário já passou, mas continua um ponto de encontros e bate-papos.
Grilo, famoso por seu vocabulário preciosista, quando não já em desuso, é leitor contumaz de dicionários que, para ele, quanto mais velhos melhores. Nada de aurélios buarques de hollanda. Pelo menos é o que me parece. Gosta evidentemente de coisas raras e, mais ainda, de palavras em desuso. Mas só quando escreve, pois conversando as palavras saem-lhe com fluência e limpidez. Em Natal, andando pelas ruas sob um imenso chapelão de palha, é uma personagem popular que chama a atenção de todos por sua terrível elegância.
Sua peculiar elegância o inscreveria entre os três ou quatro dândis que Natal já teve e que, cada um em sua época e circulo social assombraram a cidade provinciana, como o jovem Luis da Câmara Cascudo, antecedido por uma personagem conhecida como “o Conde”, o próprio Grilo e o poeta Wellington Dantas, que há muito radicou-se em Brasília.
Ele recorda que em 1952 o seu pai, Pedro Grilo Filho, o presenteou com um terno de linho branco e desde então, passou a vestir só roupa branca, por gosto e capricho, um estilo que adotou até os anos de 1970, quando o linho branco praticamente desapareceu do comércio, ficando apenas o brim branco comum, que não lhe agradava como textura. Antigamente havia o HJ, o Taylor e o L 120, linhos brancos fabricados na Inglaterra. Com a escassez, veio o linho Brás Pérola, de qualidade inferior, mas mesmo assim ainda um bom linho, fabricado no Brasil. Para esta entrevista, no Café São Luiz, ele vestiu um terno azul marinho, uma camisa de algodão branca e um foulard estampado em estilo Optical Art, que dá um toque especial à indumentária, sapatos pretos bem engraxados e o seu inseparável chapelão de palha que lembra um sombrero mexicano.
Sim, você definiu bem, concorda Grilo. O estilo é o homem. E, depois de uma hesitação, quer saber quem foi esse Buffon que eu acabara de citar, ao referir-me à sua peculiar maneira de vestir-se, que se impõe, desde a década de 1950, por sua originalidade. Porém, ao contrário do que eu pensava, Grilo informa que não há deliberação nisso; que se veste inspirado em seu guarda-roupa e a fantasia do momento. Sou espontâneo no vestir-me, diz com ar modesto. Não planejo nada. Não procuro ser diferente. Ouvindo-o, sinto o impulso de parafrasear Whistler. O estilo acontece. Quando editor de Cultura do jornal Tribuna do Norte e, anos depois, ao criar o DN Revista, suplemento semanal encartado no jornal Diário de Natal, Jorge Antonio chegou a pautar repórteres-fotográficos na produção de registros de suas toilettes, um trabalho que, por motivos desconhecidos, nunca foi publicado. Restaram, porem, algumas fotografias dessa série que consagra Grilo como um verdadeiro dândi, segundo o conceito urdido por Baudelaire.
Sempre a arte e a cultura fizeram parte de sua vida. Na infância, eu desenhava a paisagem de Natal, encantado com o que via. Meu pai, funcionário da Segurança Pública, era Inspetor de trânsito e desenhava umas letras bonitas em sacos de mantimentos. Isso me estimulou. Passei a desenhar. Morávamos, nessa época, na Rua Campos Pinto, onde havia uma bodega e me ofereci para abrir um nome na fachada e o dono aceitou, depois de apreciar o desenho que eu fizera. A partir daí não parei mais. Passei a pintar todo tipo de placas, pára-choques para automóveis e, depois, para o Rabecão da Segurança Pública, letreiros em ônibus, fachadas de lojas. Tomei conta da cidade e, abrindo letreiros, ganhei muito dinheiro.
Fui menino nas Rocas num tempo em que havia ali grandes árvores. Natal era arborizadíssima. Os quintais eram cheios de fruteiras. Ainda há um resquício dessa Natal antiga, neste bairro da Cidade Alta, nas imediações do bar de Zé Reeira. Havia árvores plantas nos dois lados das ruas e as copas dessas árvores, enlaçando-se no alto, formavam grandes túneis ou corredores vegetais. A Praça Augusto Severo, arborizada com oitizeiros, era um bosque. O Colégio Marista foi construído em meio a um bosque, a famosa Matinha, de rica memória. As ruas eram arborizadas com fícus, oitizeiros e mungubeiras, até que alguém teve a ideia de acabar com elas. Havia uma mata imensa em Lagoa Seca. Do Baldo até lá era um mangueiral só. O riacho do Baldo era um fio d´água cristalina que cortava a Avenida Rio Branco e desaguava no Oitizeiro, onde é hoje a sede da Companhia Energética do Rio Grande do Norte, Cosern, seguindo mais adiante até juntar-se às águas do rio Potengi. Alimentava a lagoa de Manoel Felipe, que em tempos recuados teve uns roçados às suas margens. Era um lugar bucólico e aprazível. Rapaz, fazia-se muitas serenatas em Natal. Sempre a música fez parte do gosto dos natalenses.
Durante a guerra, Natal não tinha calçamento nos subúrbios. Os americanos andavam a cavalo nas periferias ou de Jeep. Andava-se em Natal a qualquer hora do dia ou da noite sem que houvesse assaltos. As ocorrências criminosas eram de pequena monta, não assustavam como agora. A gente ia das Rocas à Praça do Jangadeiro, ou da Jangada como alguns chamam, a pé, sem correr riscos. O que caracterizava as festas populares? Não havia confusão. Tudo transcorria na maior paz. Não havia transporte regular. Em 1948 o prefeito Silvio Pedrosa calçou a Avenida Circular…
Nos anos de 1960 passei a frequentar a Confeitaria Cysne, onde se reunia a boemia natalense da época. Pertencia a três irmãos, Múcio, Aldemar e Rossini, oriundos de Taipu e do Ceará-Mirim. Eram irmãos do padre Ruy Miranda, que foi vigário no Ceará-Mirim por uma vida inteira. Eu era amigo de Luís de Barros e, quando aparecia na Cysne, ele me convidava a sentar à sua mesa. Estávamos lá, a bem da verdade, todos os dias. O professor Saturnino; Evaristo de Souza que ás vezes se fazia acompanhar de seu filho, Nilberto; Mário Vilar de Melo; o grão-mestre Armando Fagundes; o engenheiro Roberto Freire., com quem fiz grandes farras e era tão desmantelado quanto eu; eram habitués ainda, Luís Tavares e o doutor Mariano Coelho. Era um a turma boa danada. Depois, foram morrendo um a um… Restei aqui para contar a história.
O Granada Bar foi durante algum tempo uma extensão da Confeitaria Cysne, que fechava às 22 horas e a gente se deslocava para o Granada, que cerrava suas portas aí por volta das 2 horas da manhã, quando, em algumas ocasiões, íamos tomar a saideira no bar do Grande Hotel, na Ribeira. O senador Luis de Barros e Roberto Freire compartilhavam os serviços de um mesmo motorista, Cancão.
Casado – e bem casado, como gosta de frisar – com a mesma mulher há 59 anos, a quem chama de “a doce Francisca”, Grilo enaltece-lhe o companheirismo e o fato de ser a mesma uma natalense da gema, nascida, como nasceu, na antiga rua da Salgadeira, depois chamada da Misericórdia, onde se abatiam todas as reses e animais consumidos na cidade inteira. O casal tem quatro filhos, três machos e uma fêmea, além de quatro netos. Há muitos anos vivem em Mãe Luiza, bairro que surgiu sobre dunas, de onde se descortina uma das mais belas paisagens e vive uma população de trabalhadores, alguns com alma de artista.
Comecei a pesquisar a arquitetura e os logradouros de Natal antiga acidentalmente. Não fazia parte de minhas cogitações, até que um dia um amigo das Rocas, de nome João, me ofereceu quatro fotos daquele bairro onde vivi a infância e mocidade e estudei na escola particular do professor João das Velhas, um negro idoso, mas ainda bem duro e cheio de vida, que, por uma dessas estranhas coincidências não tinha velha nenhuma, pelo menos que soubéssemos. Era sacristão da Igreja São João. De posse dessas fotos de Natal antiga, já quase sem nenhuma nitidez, nebulosas e de contornos indefinidos, senti-me desafiado a recompô-las. Pintei assim os quatro primeiros quadros dessa coleção que se aproxima das duzentas obras. Todas, recriação de lugares e construções que desapareceram ou se acham atualmente desfiguradas pela incúria dos governantes sem amor à história. Como gosto muito de História, senti-me animado fazendo essa reconstituição que resultou num trabalho ao mesmo tempo didático e documental, que, entanto, não tem despertado o interesse das instituições nem dos que se dizem gestores culturais.
O começo não foi fácil para Grilo, que se deparou com a dificuldade de acesso a informações e acervos fotográficos relativos à Natal, cidade que não cuida bem do seu patrimônio cultural nem respeita os artistas, uma queixa praticamente generalizada. Estava nessa luta quando tive a informação de que havia um acervo fotográfico na Central Ferroviária. Procurei-os, e soube lá que o acervo havia sido transferido para o Recife. Porém, insistindo nessa busca, apareceu alguém com a informação que havia ficado um disquete com as peças dessa coleção. Obtive uma cópia e a partir daí me apliquei na realização desse conjunto de pinturas que, quando expostas, como o foi na Pinacoteca do Estado, por iniciativa de Jorge Antonio, desperta sempre um grande interesse do público que fica encantado e surpreso com a cidade antiga. Quem parece não gostar são as instituições, que viram as costas para os artistas da terra e se afadigam em prestigiar o que vem de fora. E, na medida em que pintava esses quadros, eu tinha a convicção de que fazia uma coisa original e relevante para a História e para as novas gerações, que podem se encontrar com uma Natal que não existe mais. Meu desejo seria o de deixar um legado a Natal. Como lhe disse em uma certa ocasião, anos atrás, quando expus esse trabalho na Pinacoteca. Se não houver interesse por parte de alguma instituição cultural da cidade, na aquisição dessa coleção de quadros, pretendo incinerá-los em praça pública, para chamar a atenção de todos para o descaso e a indiferença com que somos tratados, aqui, os que se dedicam a produzir uma obra cultural digna das futuras gerações.
Grilo cultiva a Trova e a Glosa como gêneros literários de sua preferência. Pertence à Academia Potiguar de Trovas, uma instituição que conheceu dias melhores e que atualmente mal se reúne. Há muita rivalidade e inveja na Academia de Trovas, que começou a existir em 1964, como Clube dos Poetas e foi evoluindo. Dela participou Cascudinho, que sempre incentivou a cultura local. Lá, tive muitos atritos e os trovadores costumavam me apodar de birrento e chato. Cheguei a ser vitima das piores agressões morais, mas o tempo dilui os erros e nem todo mundo é bom até o fim da vida. Toda a vida gostei de ler e escrever Décimas. Escrevi já para mais de 1.000, afora as que se perderam. Depois é que enveredei pela Trova.
A Décima – ou Glosa – é uma reportagem. Ela sempre conta ou comenta um fato. É, nesse aspecto, uma composição jornalística, pois reporta um fato da vida cotidiana. Doutor Mariano Coelho, meu companheiro de boemia, era exímio glosador. Publicou ainda em vida um grosso volume que reuniu sua produção no gênero, hoje um livro que não é encontrável em parte alguma. Uma verdadeira raridade. A glosa, originalmente, é o vilancete espanhol. Neste, o Mote – que estabelece o tema – constituem os dois versos finais. Porém, no Assu, os poetas inverteram a ordem e o Mote passou a ser publicado no inicio da glosa. A forma que eu cultivo é a que foi estabelecida pelos poetas açuenses. É uma narrativa de fatos e ocorrências com esse formato que difere do vilancete que remonta a uma velha tradição. Com a decadência cultural do Assu, Caicó tornou-se o centro da glosa no Rio Grande do Norte. Há um grupo de glosadores e trovadores, no Caicó, muito atuante. Considero Edson Peres um bom trovador. Há, na glosa, uma vertente que não me agrada, que é a da glosa escatológica. Aprecio aquele gênero de glosa que contém algum laivo filosófico. Moysés Sesyom, radicado no Assu, mas oriundo do Caicó, foi um grande glosador e glosou, preferencialmente, em termos escatológicos. Dele se conta que era doido por uma mulher que era cortesã de ricos no Assu e ele, um soldado de polícia sifilítico, não conseguiu subir em sua cama. Despeitado, fez a sua caveira em versos:
[…]
