*Honório de Medeiros
“Foi buscar lã e saiu tosquiado”
Eis a célebre fábula de La Fontaine, “o Lobo e o Cordeiro”, devidamente parafraseada:
“Um cordeiro matava a sede nas águas límpidas de um regato.”
“Eis que se avista um lobo que por lá passava em jejum e que lhe diz irritado”:
– “Que ousadia a sua, turvando, em pleno dia, a água que bebo. Vou castigar-te”.
– “Majestade, permita-me um aparte – diz o cordeiro – veja que estou matando a sede vinte passos adiante de onde o Senhor se encontra. Não seria possível eu ter cometido tão grave grosseria”.
– “Mas turva, e ainda pior é que você falou mal de mim no ano passado”.
– “Mas como poderia – pergunta assustado o cordeiro – se eu não era nascido”?
– “Ah, não? Então deve ter sido seu irmão”.
– “Peço-lhe perdão mais uma vez, mas deve haver um engano, pois eu não tenho irmão”.
– “Então foi algum parente seu: tios, pais… Cordeiros, cães, pastores, nenhum me poupa, assim vou me vingar”.
“E o leva até o fundo da mata, onde o esquarteja e come sem qualquer processo judicia”.
O lobo é a elite política; a ovelha, o povo.
Desde que o mundo é mundo, excetuando, talvez, um período provavelmente mítico no qual o Homem vivia anarquicamente de caça e coleta[1], sem chefes nem hierarquias[2], a Sociedade é assim mesmo: de um lado os exploradores, do outro lado, os explorados.
Assim era nas grandes civilizações arcaicas, aliás: a grega, a judia, a chinesa, a hindu.
O que mudou de lá para cá? Nada, exceto a forma: se antes a polícia do chefe usava lança, hoje usa fuzil AK-47; se antes o tributo era o butim arrancado violentamente sem qualquer justificativa, hoje a extorsão se faz sob a desculpa de se dar condições ao Estado para que este melhore a vida das ovelhas em Sociedade.
Não cabe discutir o que é um Estado. Desde o início, quando surgiu a Polícia, o Tributo, a Norma Jurídica, e a Propaganda, o Estado é isso mesmo que você, caro leitor, pensa que é: um conjunto de aparelhos de controle social que a elite política criou para manter o “status quo” e enriquecer.
É o caso, por exemplo, na Lei. A elite política dissemina a ideia de que sua finalidade é o bem-estar social. Quando os gregos, nas guerras civis, pediram leis que valessem para todos, a aristocracia pressionada acatou, mas tratou logo de controlar sua interpretação, produção e aplicação[3].
Hoje ainda é do mesmo jeito.
A Lei deve ter surgido como um estratagema de domínio: como não era mais possível dar ordens verbais a todos, e a escrita estava começando, nada melhor que cria-las, coloca-las em algum lugar público, e impor que “a ninguém é dado alegar o desconhecimento da lei”.
Tudo sob medida.
Pois bem, e essa elite política se perpetua? Claro, em todos os lugares. No Brasil, desde o império, pelo menos.
As elites, para sobreviverem, em certas circunstâncias históricas usam os talentos do seu entorno, consumem-nos e os expelem para fora do círculo íntimo do Poder Político, quando não mais necessários: são aqueles escalões intermediários que pululam entre o círculo íntimo e a base mais abaixo, toda ela constituída de “inocentes úteis”.
Quase sempre brigam entre si os integrantes da elite política[4], mas, se ameaçados, se unem contra o inimigo comum.
Essa elite política, para sobreviver, se espraia por todos os aparelhos do Estado: Judiciário, Legislativo, Executivo, Ministério Público, Tribunais de Contas etc., etc…
Aparelha tudo. Os aparelhos são integrados por membros das famílias que constituem a elite política ou agregados.
Quando não é possível a nomeação de familiares ou agregados, ainda resta a cooptação e o exílio político, o esvaziamento político/social.
E, obviamente, a cooptação ou exílio político se espraia também pela mídia servil, que bem paga, passa a filtrar os fatos – até mesmo criá-los, se for necessário – e lhes dá a conotação que interessa ao grupo dominante, assim como se espraia pelos negócios, através dos predadores empresariais, quase sempre sangue sugando, obliqua e dissimuladamente, a máquina estatal.
Obviamente, em certas circunstâncias históricas, parece mudar os atores principais do teatro político. É até possível. Mas a estrutura continua: uma nova elite política substitui a anterior que, derrotada, sai de cena.
Os atores são novos, mas o Teatro e a tragicomédia são os mesmos, há sempre lobos e ovelhas, e continua tudo igual.
Portanto temos que a elite política, SEJA DE DIREITA OU ESQUERDA domina o Executivo, o Legislativo, o Judiciário; os meios de comunicação, a tributação e os negócios empresariais com o Estado, bem como a Polícia. Ou seja, domina tudo.
E o domínio é extremamente eficiente: os tributos alimentam o Tesouro que vai pagar as obras físicas ou imateriais que vão, por sua vez, pagar toda a máquina política. Tudo isso legitimado por uma propaganda eficiente que cria a impressão de que a arrecadação vai ser usada para produzir e manter políticas públicas de interesse da ovelhada.
Enfim, não por outras razões, como não somos lobos, somos ovelhas: nos tempos de hoje, enquanto alienados, indo inevitavelmente para a tosquia, tão logo sejamos convocados, sem “tugir nem mugir”, ou, quem sabe, quando muito, discreta e aceitavelmente reclamando pelos cantos, em voz educadamente baixa, para não levar castigo.
[1] Jacques Le Goff.
[2] Robert Wright.
[3] Nikos Poulantzas.
[4] Gaetano Mosca.