*Américo de Oliveira Costa
Houve uma época, Edgar Barbosa e eu trabalhávamos no “Diário de Natal”. foi aí que ele publicou, então, grande parte dos trabalhos que integrariam, depois, o seu livro “Imagens do Tempo”. Via-as surgir e erguer-se, uma a uma, esculpidas pela arte e pelo engenho do seu lúcido espírito. Apareciam, entretanto, como simples crônicas de jornal, focalizando homens, acontecimentos e situações a que o destino, num determinado momento, sobretudo nos dias tumultuários e amargos da última guerra, dera projeção ou sentido internacional. Somados, posteriormente, a outros ensaios, no livro já mencionado, passariam a dar, pela variedade dos temas, pela universalidade dos estudos, uma ampla e exata dimensão dos seus conhecimentos, de suas experiências intelectuais, dos seus versáteis contactos culturais. Páginas e reflexões sobre Cervantes, Nijinsky, Maquiavel, Stalin, Auta de Souza, Mermoz, Leonardo da Vinci, Juvenal Lamartine – como sobre as ruínas do Coliseu, a Universidade de Salamanca, Paris, Mossoró, um velho engenho, certamente de Ceará-Mirim, o cão Buck, de Eutiquiano Reis, – e ainda um ensaio sobre a condição do jornalismo, disciplinada entre a liberdade e a responsabilidade – é entre motivações assim tão diversas e fascinantes que se movia o seu talento sem fronteias, decalques ou “pari-pris”, na fixação de elementos e ângulos que refletiam uma visão própria de fenômenos e fatos, tanto literários como morais, tanto artísticos como políticos, tantos históricos como ecológicos.
São dessa mesma categoria e dessa mesma alta qualidade intelectual os três ensaios reunidos neste volume por iniciativa meritória da Editora Universitária, da UFRN, integrando a sua Coleção “Resgate” sob os títulos de “Camões lírico”, “A justiça no reino do Quixote” e “Machado de Assis em alguns dos seus tipos”. Densos e profundos, no entanto, pelo fascínio das reflexões de Edgar, em torno de temas que têm constituído, através dos tempos, objetos de estudo e análises de alguns dos mais ilustres nomes da literatura ocidental.
Um jornal, como se sabe, e o que nele se contém, morrem, via de regra, no espaço de vinte e quatro horas; já se disse que nada mais velho do que um jornal do dia que passou. Insisto, porém, em que aquelas crônicas, escritas no burburinho da redação, e diretamente à máquina, pelas mãos nervosas de Edgar, animavam-se de tal flama insólita e bela, modelavam-se em tais substâncias e categorias intelectuais, que acabavam por resultar textos de antologia, à espera apenas, como afinal aconteceria, de serem selecionadas e recolhidas à natureza autônoma do livro. Nossa Universidade tomou a iniciativa da publicação do volume, e é sua honra que assim tenha agido.
Nos quadros culturais da província norte-rio-grandense, Edgar Barbosa se destacava sob irradiações singulares. Seu amigo e seu companheiro, como jornalista e como professor (e deste também sempre recordarão colegas e alunos a atitude mental, a correção das exposições, a palavra fácil e harmoniosa, o itinerário exemplar de mais de quarenta nos de cátedra), além da circunstância de havermos participado juntos, em várias etapas, da vida intelectual do Estado, tal condição dá-me planos e perspectivas para um depoimento, como o que agora estou pretendendo prestar.
Em dezembro de 1949, ao ser por ele recebido e saudado na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, eu dele escrevia no meu discurso de posse: “Alquimista de um surpreendente laboratório fáustico, onde multiplica, com o sortilégio de fórmulas e sínteses perfeitas, imagens do tempo sempre contagiantes, ainda quando este rótulo não as distinga, – pelo colorido e pela palpitação, – tais manifestações de sua clara inteligência são, nas letras de nossa terra, uma daquelas “things of beauty”, de que fala o poeta, uma das fontes de nossa emoção, um dos motivos de nossa alegria”.
Nada teria a retirar, hoje, desse conceito que a passagem dos dias de nenhum modo alterou. São muitos anos já, hélas! – um caro Edgar, – a rolarem sobre esse inesquecível episódio acadêmico. Havia, em nós ambos, certa fidelidade quixotesca aos objetos de nosso fervor, isto é, aos valores do espírito e da sensibilidade.
Os ídolos da idade madura ou da terceira idade nem sempre deixam permanecer nos pedestais aqueles ali alçados pelos entusiasmos ou as exaltações, muitas vezes provisórias, da juventude e da mocidade. Tu não os renegaste, nem os traíste, porém. As mudanças ocorreriam, talvez, sob outros aspectos. E talvez, também, certos desencantos, nem sempre, porém definitivos. Eis, entretanto, os versos com que Rimbaud a tantos consola:
Ô saisons! Ô chateaux!
Quelle ame est sans défauts!
Desculpa-me se, nos teus últimos dias, não te visitei mais vezes, mesmo ciente de que seriam as derradeiras. Acompanhava, de fora, a evolução de tua moléstia. Doía-me o espetáculo confrangedor de tua deterioração orgânica irreversível, ao mesmo tempo que falavas (desconfio que não acreditarias no que dizias, mas obedecias à lei inexorável da espécie de tentar sempre iludir-se, de procurar esperanças inexistentes, agarrando-se a aparências pueris contra as duras realidades) em mais dias menos dias comparecer ao “campus”, continuar as aulas, reingressar o quotidiano, reinserir-se no curso da vida…
Se te fosse dado o fenômeno da “volta”, recomeçarias tudo de novo, sob os mesmos signos e os mesmos caminhos, servido pelos mesmos instrumentos do espírito e do sonho? Decerto que não há como imaginar de modo diferente. Aquela era a tua natureza, aquele o teu destino, ambos intransferíveis. Inclusive porque não foram caminhos percorridos inutilmente. Tua vida foi, sob os prismas aqui acentuados, uma semeadura de beleza, de cultura, de sabedoria clássica e humanista. Nas margens das estradas, por onde passaste, foste deixando símbolos e marcas de afirmação, na cátedra, na Academia, no livro, na imprensa para admiração de tua terra e de tu agente.
“Honra dos homens, Santa Linguagem!” invocava Paul Valéry. Tuas “Imagens do Tempo”, por exemplo, e tantas outras páginas ainda esparsas em plaquetes, revistas e jornais, a serem igualmente recolhidas, dizem e dirão sempre como no testemunho do grande poeta, do teu amor essencial e do teu culto invariável às nobres e puras expressões do pensamento criador, o mestre, repito tantos anos depois, de fórmulas e sínteses perfeitas na arte de falar e de escrever.