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Em Lisboa com Ary Quintella

Diplomata e passeador, Colaborador de Navegos descreve sua religação com Portugal em um roteiro que desvela Lisboa.

*Ary Quintella

Embora eu tenha voltado muitas vezes depois a Portugal, a alguns desses lugares nunca mais pude ir — a Alcobaça, por exemplo; já ao Couto de Cucujães e a Oliveira de Azeméis, voltei. Em compensação, conheci outros desde então, particularmente no Alentejo e no Algarve. Todos ocupam um lugar especial para mim. Nunca passei um dia triste ou decepcionante em Portugal. Isso seria impossível. Há poucos países tão acolhedores e encantadores.Aos 19 anos, fui a Portugal pela primeira vez. Durante uns quinze dias, viajei bastante pelo país. Além de Lisboa, fui ao Porto, a Nazaré, Fátima, ao Mosteiro da Batalha, a Alcobaça, Tomar, Coimbra, Mafra, Sintra e Queluz. Por razões familiares, estive em uma pequena cidade — menos de 11 mil habitantes em 2011 — no Norte, Couto de Cucujães. O nome oficial hoje é Vila de Cucujães, mas para mim o “Vila” nunca substituirá o “Couto”. Localiza-se no município de Oliveira de Azeméis, outro nome poético. Anos depois, quando li A Ilustre Casa de Ramires na biblioteca na casa de praia dos meus futuros sogros, pude visualizar o cenário imaginado por Eça de Queirós.

Minha curiosidade por Lisboa, aos 19 anos, era grande porque, na adolescência, eu sentira forte impressão ao ler em Candide a descrição feita por Voltaire do terremoto de 1755. Queria conhecer a cidade celebremente reconstruída pelo marquês de Pombal. Em sua biografia do marquês, publicada em 1981, Agustina Bessa-Luís escreveu: “Sem esse cataclismo enorme que destruiu Lisboa em 1755, Sebastião José nunca passaria dum arrivista contratado para conceder alvarás […] Foi preciso que um homem sem vocação filosófica se debruçasse sobre o acontecimento e, armado de coragem, chamasse o seu bem a essa atroz ruína”.

Eu não podia prever, aos 19 anos, que minha irmã, ao se casar, iria morar e trabalhar em Portugal, que meus dois sobrinhos nasceriam em Lisboa, e que eu teria sempre um motivo para voltar. Por causa da pandemia, não vejo Titina desde setembro de 2019, quando passei um dia em Lisboa para vê-la.

Ela sempre morou no Chiado, em dois apartamentos sucessivos, até que, em 2020, mudou-se para a Lapa. O fato de eu não conhecer sua nova casa, sua rua, de eu não poder visualizar sua vizinhança é uma prova a mais das aberrações causadas pela pandemia. Na minha imaginação, ela está ainda no Chiado, e eu estou caminhando por ali.

Dos lugares onde nunca morei, Lisboa é, com Paris, aquele onde já estive mais vezes. Paradoxalmente, isso dificultou a seleção de fotos, que me tomou dois fins de semana inteiros e várias noites. Notei que, no meu celular, Lisboa aparece muitas centenas de vezes, mas faltam na galeria abaixo alguns dos lugares que eu mais teria gostado de ilustrar. Não tenho fotos boas do Castelo de São Jorge, da fachada da Livraria Bertrand, da Rua Garrett, do Teatro de São Carlos. Ando pelo Bairro Alto, pelo Chiado, pela Baixa, pela Alfama e pela Mouraria e só pareço me interessar por portas e janelas. As mesmíssimas janelas, em fachadas de azulejos, aparecem nas minhas fotos, ano após ano.

Para cada um de nós existe uma Lisboa própria, individual, que pertence apenas a nós mesmos. Minha mãe, ao saber que eu selecionava fotos para este texto, me perguntou: “Você vai mostrar os jacarandás da Avenida Dom Carlos I? O Mercado da Ribeira renovado? O cedro do Príncipe Real? Os prédios lisboetas ao cair da tarde, quando o pôr do sol os deixa dourados? A minha rua predileta, a de O Século?” Respondi: “Vou mostrar a minha Lisboa, não a tua”. Na verdade, a seleção que fiz dependeu, também, da qualidade das fotos disponíveis. Notei haver, nas perguntas de minha mãe, uma alusão a dois amigos que ela adora, Chicô Gouvêa e Paulo Reis, mas não senti ciúmes.

Menciono a Rua de O Século em Um dia em Lisboa, onde descrevo meu roteiro habitual pelas livrarias lisboetas. Inseri ali uma ou outra apreciação sobre pontos da cidade. Mesmo 24 horas em Lisboa, a passeio, são suficientes para dar o gosto de viver. O viajante comerá bem, só verá beleza ao seu redor, não passará muito frio ainda que seja inverno, visitará algum excelente museu — o Gulbenkian é espetacular, e de dimensões humanamente factíveis — e será tratado com afabilidade em todo canto.

Muitas vezes, pensei em escrever sobre o Museu Calouste Gulbenkian. Já me aconteceu de ir lá especificamente para tirar fotos das obras de arte ou dos objetos de minha predileção na coleção, de forma a estar documentado quando me decidisse a descrever a experiência de visitá-lo. Ainda não o fiz.

Há alguns anos, visitei com minha filha o Museu da Farmácia . Foi nessa mesma temporada que a levei ao extraordinário Oceanário. Há o Museu dos Coches, o do Oriente, o do Chiado, o de Arte Antiga, conhecido como das Janelas Verdes, a Casa Fernando Pessoa, o Castelo de São Jorge, o Mosteiro dos Jerônimos, as ruínas do Convento do Carmo, com seu museu arqueológico, e, brilhante novidade inaugurada em 2016, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), onde já vi excelentes exposições. Cito apenas aqueles onde estive nos últimos anos.

Em um ensaio de 1998 intitulado “Portugal, de minha varanda”, Alberto da Costa e Silva narra que o contista Samuel Rawet — e isto é tocante para mim, pois Rawet era amigo de meu pai — emigrou com a família da Polônia para o Rio de Janeiro com dois anos de idade. Só adulto ele esteve novamente na Europa. No caminho de volta para o Brasil, parou em Lisboa, pela primeira vez. Diz Alberto da Costa e Silva: “E teve a sensação de um reencontro feérico. Deixou-se ficar na cidade, em ócio — estava em casa —, por alguns meses. E não perdeu um só dia sem emocionar-se, diante de uma janela, de uma escadaria, de um beco, de uma nesga do Tejo, com o que sabia ser parte da biografia de sua alma”.

Lisboa parece imutável, mas é na verdade uma dessas cidades onde, se ficarmos algum tempo sem visitá-las, haverá muitas boas novidades quando regressarmos. Novos restaurantes, novos museus, novos cafés, novas lojas. Em 2016, foi uma surpresa descobrir que o Consulado do Brasil havia se mudado e que, nas suas instalações em um prédio pombalino na praça Luís de Camões, havia agora um hotel chamado Le Consulat. Uma noite, fomos ao bar do hotel, e lembrei, que, uma vez, eu fora àquele mesmo recinto fazer uma procuração.

Por causa da pandemia, imagino que alguns lugares de que gosto terão fechado, nestes dois anos.

Apesar de parecer tão longa esta fase, a Covid, porém, é apenas um momento transitório da humanidade. Voltará o dia em que eu poderei caminhar pelo Terreiro do Paço, almoçar à beira do Tejo, ir às livrarias, tomar um café acompanhado de um pastel de nata, sentar no Jardim do Príncipe Real, passear pela Alfama e a Mouraria, rever os Painéis de São Vicente nas Janelas Verdes, jantar em uma marisqueira, passar uma manhã ou uma tarde em Sintra, e lá comer um cabrito assado com batatas — eu, que nem gosto de carne vermelha — ir à ópera no Teatro de São Carlos e, em algum momento, provar de novo o bacalhau com “azeitonas explosivas” em um dos restaurantes do José Avillez. Leitora, leitor, não me perguntem como, mas as azeitonas realmente estouram na boca.

Voltarei a ver aquela de quem Camões dizia:

E tu, nobre Lisboa, que no mundo
Facilmente das outras és princesa

Os programas serão sempre maravilhosos, já que feitos com a minha adorável Titina, que transforma a vida em uma aventura incansável de charme, glamour e sedução.