*Horácio Paiva**
O encontro me remete a um tempo pessoal já antigo: 1965, quando eu tinha 19 anos, na casa de meu irmão Daltro, em Macau, no calor da tarde, antes do vento Nordeste soprar. Ali encontrei o romântico Gonçalves Dias, emocionado e inspirado (algo, aliás, próprio dos românticos), no torvelinho estético da dor e da poesia em que se envolvera, ao relembrar a paixão amorosa de sua juventude, podada pelo destino, e com maestria exposta em seu notável poema “Ainda uma vez – adeus!”, o qual Daltro declamava, com ávido entusiasmo.
Trata-se de poema dos mais belos e também dos mais vivos do romantismo latino-americano. Algo prosaico, confessional, e sobretudo humano, confere-lhe ares de modernidade.
Claro, não foi o primeiro Gonçalves Dias que vi, pois já conhecera o da “Canção do Tamoio” (quase uma oração de otimismo e força) e o da “Canção do Exílio” (quase um hino – e estando, de fato, algumas de suas expressões no Hino Nacional), e vários outros, desde remotíssimos tempos escolares. Já se chegou a dizer que a “Canção do Exílio” é o maior fenômeno de intertextualidade da cultura brasileira, tal o número de produções sequenciais que gerou. Estes – aos quais acrescento “I – Juca-Pirama” (“o que será morto”, considerado a expressão máxima da poesia indianista) e “O Canto do Piaga” -, todos belos poemas, tratando de povo e terra pátria, têm a natureza do romantismo social, segmento da escola romântica tão ao gosto dos italianos e também explorado por outro grande poeta nacional, o baiano Castro Alves – com as cores da política e do protesto.
Com efeito, duas vertentes jorram da sensibilidade estética de Gonçalves Dias. Ambas de águas límpidas, mas torrenciais: uma, épica, social, nacional, indianista e naturalista, que exalta e defende o povo originário – os Índios – e a natureza exuberante do Brasil tropical, da qual os mencionados poemas são exemplos; outra, amorosa, íntima, sentimental, individualista.
Pérolas desse romantismo intimista, lírico, autobiográfico e emocional (cujo subjetivismo constitui a sua característica emblemática, por vezes chegando a definir o cerne da própria escola) são, sem dúvidas, os seus poemas “Olhos verdes”, “Não me deixes” e “Ainda uma vez – adeus!”. Este último, especialmente, que traduz episódio dos mais intensos de sua vida – quando o poeta sentiu a mão pesada e dura do áspero destino, como diria José Albano -, chega a resultado lírico dos mais sublimes. Ao final desta resenha, transcrevo nota do poeta e tradutor Onestaldo de Penafort, redigida sobre o assunto, a pedido de Manuel Bandeira.
Nasceu Antônio Gonçalves Dias em 10 de agosto de 1823, no sítio Boa Vista, Município de Caxias, Maranhão, e faleceu em 3 de novembro de 1864 (aos 41 anos), tragicamente, quando retornava da Europa, no naufrágio do navio Ville de Boulogne, na costa daquele Estado (mais precisamente no baixio dos Atins, em frente à Ponta da Boa Vista, perto de Tutóia). Foi, aliás, o único a morrer: esquecido em seu leito, agonizante, com a tuberculose em fase avançada, afogou-se.
Era filho de pai branco e mãe índia ou cafusa (mestiça de africano, negro, com índio). Seu pai, o comerciante português João Manuel Gonçalves Dias, se refugiara com a amante, Vicência Ferreira, no sítio onde nasceu o poeta, para escapar a perseguições políticas de nacionalistas radicais. Nunca legalizou essa união conjugal, encerrada por ele, que se casou com outra mulher, mas mantendo a guarda do filho, afastado assim da mãe com apenas 6 anos de idade. Anos depois, havendo-lhe morrido o pai, o poeta contou com o apoio da madrasta, que o mandou estudar em Portugal. Ali, na histórica Universidade de Coimbra, concluiu seu curso de Direito, retornando ao Brasil em 1845. O período passado em Portugal foi muito importante na formação de Gonçalves Dias. Além de seu curso universitário, estudou língua e literatura de vários países: França, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Itália. E teve contato com vários escritores do romantismo português, entre eles Alexandre Herculano, Almeida Garret, Feliciano de Castilho. Também em Coimbra escreveu os “Primeiros Cantos”, parte dos “Segundos Cantos” e, em 1843, aquele que viria a ser o seu poema mais famoso e mais reproduzido e conhecido em nosso País: a “Canção do Exílio”.
De volta ao Brasil, exerceu diversos cargos públicos, desde professor de Latim e História do Brasil no renomado Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, oficial da Secretaria de Negócios Estrangeiros (o que lhe deu novas oportunidades de viagens ao exterior) a membro da Comissão Científica de Exploração.
Mesmo nesta apertada síntese biográfica, não pode faltar a citação desses episódios escritos pela mão do destino e que marcaram o poeta: seu encontro e paixão imediata por Ana Amélia Ferreira do Vale, em 1851, no Maranhão, e, no ano seguinte, 1852, a rejeição, pelos pais dela, do pedido de casamento, motivada pela origem bastarda e mestiça do poeta.
Voltando ao Rio, nesse mesmo ano de 1852, casou com Olímpia Carolina da Costa, mas não foi feliz. Dela separou-se em 1856. Tiveram uma filha, que morreu ainda na primeira infância.
Produziu extensa obra literária.
Além de poeta, teatrólogo, romancista, etnógrafo, historiador, advogado, professor, exerceu o jornalismo.
Estudioso do idioma Tupi, escreveu um “Dicionário da Língua Tupi”, impresso em Leipzig, Alemanha, pela editora Brockhaus, em 1858.
Como poeta, publicou: “Primeiros Cantos” (1846), “Segundos Cantos” (1848), “Últimos Cantos” (1851), “Os Timbiras” (1857), “Cantos” (1857). Após sua morte, são publicados os poemas então inéditos de “Lira Vária”, em 1869. À exceção de “Os Timbiras” e “Cantos”, editadas em Leipzig, as demais o foram no Rio de Janeiro.
GONÇALVES DIAS (n. 10/08/1823, Caxias; m. 03/11/1864, costa do Maranhão):
AINDA MAIS UMA VEZ – ADEUS
I
Enfim te vejo! — enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te,
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei! Cruas ânsias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!
II
Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos,
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente,
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!
III
Louco, aflito, a saciar-me
D’agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da esp’rança,
Tu me vieste à lembrança:
Quis viver mais e vivi!
IV
Vivi; pois Deus me guardava
Para este lugar e hora!
Depois de tanto, senhora,
Ver-te e falar-te outra vez;
Rever-me em teu rosto amigo,
Pensar em quanto hei perdido,
E este pranto dolorido
Deixar correr a teus pés.
V
Mas que tens? Não me conheces?
De mim afastas teu rosto?
Pois tanto pôde o desgosto
Transformar o rosto meu?
Sei a aflição quanto pode,
Sei quanto ela desfigura,
E eu não vivi na ventura…
Olha-me bem, que sou eu!
VI
Nenhuma voz me diriges!…
Julgas-te acaso ofendida?
Deste-me amor, e a vida
Que me darias — bem sei;
Mas lembrem-te aqueles feros
Corações, que se meteram
Entre nós; e se venceram,
Mal sabes quanto lutei!
VII
Oh! se lutei! . . . mas devera
Expor-te em pública praça,
Como um alvo à populaça,
Um alvo aos dictérios seus!
Devera, podia acaso
Tal sacrifício aceitar-te
Para no cabo pagar-te,
Meus dias unindo aos teus?
VIII
Devera, sim; mas pensava,
Que de mim t’esquecerias,
Que, sem mim, alegres dias
T’esperavam; e em favor
De minhas preces, contava
Que o bom Deus me aceitaria
O meu quinhão de alegria
Pelo teu, quinhão de dor!
IX
Que me enganei, ora o vejo;
Nadam-te os olhos em pranto,
Arfa-te o peito, e no entanto
Nem me podes encarar;
Erro foi, mas não foi crime;
Não te esqueci, eu to juro:
Sacrifiquei meu futuro,
Vida e glória por te amar!
X
Tudo, tudo; e na miséria
Dum martírio prolongado,
Lento, cruel, disfarçado,
Que eu nem a ti confiei:
“Ela é feliz (me dizia),
“Seu descanso é obra minha.”
Negou-me a sorte mesquinha. . .
Perdoa, que me enganei!
XI
Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!
XII
Enganei-me!… — Horrendo caos
Nessas palavras se encerra,
Quando do engano, quem erra
Não pode voltar atrás!
Amarga irrisão! reflete:
Quando eu gozar-te pudera,
Mártir quis ser, cuidei qu’era…
E um louco fui, nada mais!
XIII
Louco, julguei adornar-me
Com palmas d’alta virtude!
Que tinha eu bronco e rude
Co’o que se chama ideal?
O meu eras tu, não outro;
Stava em deixar minha vida
Correr por ti conduzida,
Pura, na ausência do mal.
XIV
Pensar eu que o teu destino
Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura
Deus ab eterno a fizera,
No meu caminho a pusera…
E eu! eu fui que a não quis!
XV
És d’outro agora, e pr’a sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!
XVI
Dói-te de mim, que t’imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!… de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!
XVII
Adeus qu’eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!
XVIII
Lerás porém algum dia
Meus versos d’alma arrancados,
D’amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; — e então,
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiede,
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, — de compaixão.
NOTAS:
(1) Nota redigida por Onestaldo de Penafort, a pedido de Manuel Bandeira: “A poesia “Ainda uma vez – adeus!”, bem como as poesias “Palinódia” e “Retratação”, foram inspiradas por Ana Amélia Ferreira do Vale, cunhada do Dr. Teófilo Leal, ex-condiscípulo do poeta em Portugal e seu grande amigo. Gonçalves Dias viu-a pela primeira vez em 1846 no Maranhão. Era uma menina quase, e o poeta, fascinado pela sua beleza e graça juvenil, escreveu para ela as poesias “Seus olhos” e “Leviana”. Vindo para o Rio, é possível que essa primeira impressão tenha desaparecido do seu espírito. Mais tarde, porém, em 1851, voltando a S. Luís, viu-a de novo, e já então a menina e moça de 46 se fizera mulher, no pleno esplendor de sua beleza desabrochada. O encantamento de outrora se transformou em paixão ardente, e, correspondido com a mesma intensidade de sentimento, o poeta, vencendo a timidez, pediu-a em casamento à família. A família da linda Don’Ana – como lhe chamavam – tinha o poeta em grande estima e consideração. Mais forte, porém, do que tudo, era naquele tempo no Maranhão o preconceito de raça e casta. E foi em nome desse preconceito que a família recusou o seu consentimento. Por seu lado, o poeta, colocado diante das duas alternativas: renunciar ao amor ou à amizade, preferiu sacrificar aquela a esta, levado por um excessivo escrúpulo de honradez e lealdade, que revela nos mínimos atos de sua vida. Partiu para Portugal. Renúncia tanto mais dolorosa e difícil por que a moça que estava resolvida a abandonar a casa paterna para fugir com ele, o exprobou em carta, dura e amargamente, por não ter tido a coragem de passar por cima de tudo e de romper com todos para desposá-la! E foi em Portugal, tempos depois, que recebeu outro rude golpe: Don’Ana, por capricho e acinte à família, casara-se com um comerciante, homem também de cor como o poeta e nas mesmas condições inferiores de nascimento. A família se opusera tenazmente ao casamento, mas desta vez o pretendente, sem medir considerações para com os parentes da noiva, recorreu à justiça, que lhe deu ganho de causa, por ser maior a moça. Um mês depois falia, partindo com a esposa para Lisboa, onde o casal chegou a passar até privações. Foi aí, em Lisboa, num jardim público, que certa vez se defrontaram o poeta e a sua amada, ambos abatidos pela dor e pela desilusão de suas vidas, ele cruelmente arrependido de não ter ousado tudo, de ter renunciado àquela que com uma só palavra sua se lhe entregaria para sempre. Desvairado pelo encontro, que lhe reabrira as feridas e agora de modo irreparável, compôs de um jato as estrofes de “Ainda uma vez – adeus!”, as quais, uma vez conhecidas da sua inspiradora, foram por esta copiadas com o seu próprio sangue.”
(2) A estas alturas sou tentado à exploração dialética, intertextual, de outro poema de Gonçalves Dias, também inspirado pela musa Ana Amélia, mas escrito antes dos sucessos dramáticos que os envolveram. Trata-se de “Olhos verdes”, e o associo a dois outros de temática igual: o primeiro, de Camões (1524-1580) – e portanto anterior ao de Gonçalves Dias; o segundo, posterior a este, é de outro brasileiro ilustre: o parnasiano Vicente de Carvalho (1866-1924). Vejam os três – e percam-se nesses sonhos:
De Gonçalves Dias
OLHOS VERDES
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte.
Diz uma – vida, outra – morte;
Uma – loucura, outra – amor.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do coração;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como se lê num espelho,
Pude ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas postas em calma
Também refletem os céus;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo só da lembrança
De uns olhos da cor da esperança,
De uns olhos verdes que vi!
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós:” Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos da cor do mar;
Eram verdes sem esp’rança,
Davam amor sem amar!”
Dizei-o vós, meus amigos,
Que ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois que os vi!
De Camões:
MOTE ALHEIO
Menina dos olhos verdes,
Por que me não vedes?
VOLTAS
Eles verdes são,
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não.
Vossa condição
Não é de olhos verdes,
Porque me não vedes.
Isenção a molhos
Que eles dizem terdes,
Não são de olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de geolhos,
E vós não me credes,
Porque me não vedes.
Havia de ser,
Por que possa vê-los,
Que uns olhos tão belos
Não se hão de esconder.
Mas fazeis-me crer
Que já não são verdes,
Porque me não vedes.
Verdes não o são
No que alcanço deles;
Verdes são aqueles
Que esperança dão.
Se na condição
Está serem verdes,
Por que me não vedes?
De Vicente de Carvalho:
OLHOS VERDES
Olhos encantados, olhos cor do mar,
Olhos pensativos que fazeis sonhar!
Que formosas cousas, quantas maravilhas
Em vos vendo, sonho, em vos fitando vejo;
Cortes pitorescos de afastadas ilhas
Abanando no ar seus coqueirais em flor,
Solidões tranquilas feitas para o beijo,
Ninhos verdejantes feitos para o amor…
Olhos pensativos que falais de amor!…
Vem caindo a noute, vai subindo a lua…
O horizonte, como para recebê-las,
De uma fímbria de ouro todo se debrua;
Afla a brisa, cheia de ternura ousada,
Esfrolando as ondas, provocando nelas
Bruscos arrepios de mulher beijada…
Olhos tentadores da mulher amada!
Uma vela branca, toda alvor, se afasta
Balançando na onda, palpitando ao vento;
Ei-la que mergulha pela noite vasta,
Pela vasta noute feita de luar;
Ei-la que mergulha pelo firmamento
Desdobrando ao longe nos confins do mar…
Olhos cismadores que fazeis cismar!
Branca vela errante, branca vela errante,
Como a noute é clara! Como o céu é lindo!
Leva-me contigo pelo mar… Adiante!
Leva-me contigo até mais longe, a essa
Fímbria do horizonte onde te vais sumindo
E onde acaba o mar e de onde o céu começa…
Olhos abençoados cheios de promessa!
Olhos pensativos que fazeis sonhar,
Olhos cor do mar!
**Horácio de Paiva Oliveira – Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.