*Horácio Paiva
A primeira parte do artigo você encontra aqui.
O cineasta português José Leitão de Barros captou bem a mobilidade “cinematográfica” da vida do poeta em seu belo filme intitulado “Camões”, que concorreu à primeira edição do Festival de Cannes, em 1946.
LUÍS DE CAMÕES (n. 1524, Lisboa ou Coimbra; m. 1580, Lisboa):
ALMA MINHA GENTIL…
Alma minha gentil que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
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NOTAS:
01) Sobre o “Alma minha gentil…”, interessante confrontar esteticamente essa obra-prima de Camões com o seguinte soneto de Petrarca (20/7/1304-19/7/1374), o Soneto 31, com versos iniciais muito parecidos. Ei-lo no original, em italiano:
SONETO DE PETRARCA (SONETO 31):
Questa anima gentil che si diparte,
anzi tempo chiamata a l’altra vita,
se lassuso è quanto esser dê gradita,
terrà del ciel la piú beata parte.
S’ella riman fra ’l terzo lume et Marte,5
fia la vista del sole scolorita,
poi ch’a mirar sua bellezza infinita
l’anime degne intorno a lei fien sparte.
Se si posasse sotto al quarto nido,
ciascuna de le tre saria men bella,10
et essa sola avria la fama e ’l grido;
nel quinto giro non habitrebbe ella;
ma se vola piú alto, assai mi fido
che con Giove sia vinta ogni altra stella.
E na tradução do poeta baiano Edmílson Santos Silva Movér:
Esta alma gentil que partiu,
antes do tempo, chamada à outra vida,
terá no céu segura acolhida
terá do céu a mais beata parte.
Se ela ficar entre a terceira luz e Marte,
será a vista do sol descolorida
depois virá, toda alma ao céu subida
em torno dela olhar sua beleza infinita
Se pousar abaixo do quarto ninho,
nenhuma das três será mais bela,
que esta só, espalhada a fama e o grito;
No quinto giro não chegara ela;
mas se voar mais alto, em muito confio
ser vencido Júpiter e cada outra estrela.
02) Transcrição do poema “Catarina a Camões”, de Elizabeth Barret Browning, na tradução de Fernando Pessoa:
Catarina a Camões
Elizabeth Barret Browning
Tradução de Fernando Pessoa
I
P’ra a porta onde não surges nem me vês
Há muito tempo que olho já em vão.
A esperança retira o seu talvez;
Aproxima-se a morte, mas tu não.
Amor, vem
Fechar bem
Estes olhos de que dissestes ao vê-los:
O lindo ser dos vossos olhos belos.
II
Quando te ouvi cantar esse bordão
Nos meus de primavera alegres dias;
Todo alheio louvar tendo por vão
Só dava ouvidos ao que tu dizias
– Dentro em mim
Dizendo assim:
“Ditosos olhos de que disse ao vê-los:
O lindo ser dos vossos olhos belos.”
III
Mas tudo muda. Nesta tarde fria
O sol bate na porta sem calor.
Se estivesse aí murmuraria
Como dantes tua voz – “amo-te, amor”;
A morte chega
E já cega
Os olhos que ontem eram teus desvelo
O lindo ser dos vossos olhos belos.
IV
Sim. Creio que se a vê-los te encontrasses
Agora, ao pé do leito em que me fino,
Ainda que a beleza lhes negasses,
Só pelo amor que neles eu defino
Com verdade
E ansiedade
Repetirias, meu amor, ao vê-los:
O lindo ser dos vossos olhos belos.
V
E se neles pusesse teu olhar
E eles pusessem seu olhar no teu,
Toda a luz que começa a lhes faltar
Voltaria de pronto ao lugar seu.
Com verdade
E ansiedade
Dir-se-ia como tu disseste ao vê-los:
O lindo ser dos vossos olhos belos.
VI
Mas – ai de mim! – tu não me vês senão
Nos pensamentos teus de amante ausente,
E sorrindo talvez, sonhando em vão,
Trás o abanar do leque levemente;
E, sem pensar,
Em teu sonhar
Iras talvez dizendo sempre ao vê-los:
O lindo ser dos vossos olhos belos,
VII
Enquanto o meu espírito se debruça
Do meu pálido corpo sucumbido,
Ansioso de saber que falas usa
Teu amor p’ra meu espírito ferido,
Poeta, vem
Mostrar bem
Que amor trazem aos olhos teus desvelos
– O lindo ser dos vossos olhos belos.
VIII
Ó meu poeta, ó meu profeta, quando
Destes olhos louvaste o lindo ser,
Pensaste acaso, enquanto ias cantando,
Que isso já estava prestes de morrer?
Seus olhares
Deram-te ares
De que breve podias não mais vê-los,
O lindo ser dos vossos olhos belos.
IX
Ninguém responde. Só suave, defronte,
No pátio a fonte canta em solidão,
E como água no mármore da fonte,
Do amor p’ra a morte cai meu coração.
E é da sorte
Que seja a morte
E não o amor, que ganhe os teus desvelos
– O lindo ser dos vossos olhos belos!
X
E tu nunca virás? Quando eu me for
Onde as doçuras estão escondidas,
E onde a tua voz, ó meu amor,
Não me abrirá as pálpebras descidas,
Dize, amo meu,
“O amor, morreu!”
Sob o cipreste chora os teus desvelos
– O lindo ser dos vossos olhos belos.
XI
Quando o angelus toca à oração,
Não passarás ao pé deste convento,
Lembrando-te, a chorar, do cantochão
Que anjos nos traziam do firmamento?
No ardor meu
Eu via o céu
E tu: “O mundo é vil, ó meus desvelos,
Ao lindo ser dos vossos olhos belos?”
XII
Devagar quando, do palácio ao pé,
Cavalgares, como antes, suave e rente,
E ali vires um rosto que não é
O que vias ali antigamente,
Dirás talvez
“Tanta vez
Me esperaste aqui, ó meus desvelos
Ó lindo ser dos vossos olhos belos!”
XIII
Quando as damas da corte, arfando os peitos,
Te disserem, olhando o gesto teu,
“Canta-nos, poeta, aqueles versos feitos
Àquela linda dama que morreu”,
Tremerás?
Calar-te-ás?
Ou cantarás, chorando, os teus desvelos
– O lindo ser dos vossos olhos belos?
XIV
“Lindo ser de olhos belos!” Suaves frases
E deliciosas quando eu as repito!
Cem poesias outras que cantasses,
Sempre nesta a melhor terias dito.
Sinto-a calma
Entre a minha alma
E os rumores da terra ? pesadelos:
– O lindo ser dos vossos olhos belos.
XV
Mas reza o padre junto à minha face,
E o coro está de joelhos todo em prece,
E é forçoso que a alma minha passe
Entre cantos de dor, e não como esse.
Miserere
P’los que fere
O mundo, e p’ra Natércia, os teus desvelos
– O lindo ser dos vossos olhos belos.
XVI
Guarda esta fita que te mando
(Tirei-a dos cabelos para ti).
Sentir-te-ás, quando o teu choro arda,
Acompanhado na tua dor por mi;
Pois com pura
Alma imperjura
Sempre do céu te olharão teus desvelos
– O lindo ser dos vossos olhos belos.
XVII
Mas agora, esta terra inda os prendendo,
Desses olhos o brilho é inda alado…
Amor, tu poderás encher, querendo,
Teu futuro de todo o meu passado,
E tornar
A cantar
A outra dama ideal dos teus desvelos:
O lindo ser dos vossos olhos belos.
XVIII
Mas que fazeis, meus olhos, ó perjuros!
Perjuros ao louvor que ele vos deu,
Se esta hora mesmo vos não mostrais puros
De lágrima que acaso vos encheu?
Será forte
Choro ou morte
Se indignos os tornar de teus desvelos
– O lindo ser dos vossos olhos belos.
XIX
Seu futuro encherá meu ‘spírito alado
No céu, e abençoá-lo-ei dos céus.
Se ele vier a ser enamorado
De olhos mais belos do que os olhos meus,
O céu os proteja,
Suave lhes seja
E possa ele dizer, sincero, ao vê-los: – O lindo ser dos vossos olhos belos.
02-a) O soneto de Camões que inspirou a poetisa inglesa:
QUEM VÊ, SENHORA…
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só com vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.
Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Donde já me não fica mais de resto.
Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho tudo é vosso;
E o proveito disso eu só o levo.
Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
03) O soneto do cearense José Albano parece reportar-se ao próprio Camões, traçando o seu perfil existencial e espiritual:
SONETO I
Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.
Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana mas tão pouco dura;
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.
Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noute e dia
E só com saudades me atormento;
Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento,
Senão de ter cantado o que sofria.
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(*) Horácio de Paiva Oliveira – Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.