*Anastassia Boutsk
Nike Wagner tem uma ascendência respeitável: nascida em Bayreuth, ela é bisneta de Richard Wagner e trineta de Franz Liszt. Além disso, é uma autora extremamente lúcida sobre os temas arte e música, crítica implacável da indústria artística e diretora geral do festival Pèlerinages, realizado todos os anos em Weimar, em memória de Liszt.
Deutsche Welle: A senhora esteve no Festival de Donaueschingen, de música contemporânea, deste ano. Acredita que Franz Liszt se encontraria, hoje, entre os apreciadores, ou mesmo intérpretes da Música Nova?
Nike Wagner: Sim, com toda a certeza. Franz Liszt sempre se definiu como “músico do futuro”. Ele sempre incentivou e apoiou as obras de seus contemporâneos. Tenho certeza de que também hoje em dia ele se encontraria, como intérprete e compositor, nos centros da Música Nova [música contemporânea de vanguarda] ou nos locais onde ocorrem estreias.
Em Bayreuth a senhora cresceu com a arte de Richard Wagner. Quando e como encontrou o acesso a Liszt? Pois não é, nem de longe, tão fácil encontrar um acesso a ele quanto a um Mozart, digamos.
É isso mesmo. Simplesmente não se escutam suas obras com a frequência devida. Eu conhecia, no máximo, os Sonhos de amor e as Rapsódias húngaras, fragmentos de uma obra gigantesca. Envergonho-me, mas tenho que admitir que só muito tarde voltei a atenção para Franz Liszt, e isso através de meu interesse pela música contemporânea, um meio no qual eu sempre ouvia comentários entusiásticos sobre o compositor. E por fim eu também o descobri através de sua obra de maturidade (sobre a qual Béla Bartók dizia que abrira as portas da música do século 20). Pouco depois, recebi o encargo de dirigir um festival em Weimar. Eu o dediquei a Liszt, que em meados do século 19 era uma espécie de local hero. Desde então, todos os anos apresento as suas peças aqui, com a maior frequência possível.
Como aconselharia um melômano sem preconceitos a se aproximar de Franz Liszt?
Eu diria: através das obras tardias, principalmente das peças para piano, mas também da música sacra. Essa música tem uma aridez quase “existencial”, a tonalidade quase não é mais definível, o som é de uma tristeza tocante. Então o próximo passo seria explorar sua obra de trás para a frente, também as peças dos anos 1830 e 1840. Por exemplo Années de pèlerinage (Anos de peregrinação), o grande ciclo pianístico; ou os Estudos transcendentais, que na época de Liszt eram totalmente inexecutáveis.
E aí se descobrirá o romântico Liszt, capaz de transformar em música situações da natureza, impressões artísticas ou emocionantes histórias da literatura mundial. Ele não produzia “música programática”, mas criava suas próprias elaborações poéticas. E, então, eu diria que se deve conhecer tão logo possível os poemas sinfônicos. São obras orquestrais gigantescas – que às vezes causam estranheza devido a uma certa grandiloquência, à sua fé indiscutível em “ideais” – mas também elas são excitantes viagens aventureiras. Franz Liszt adorava os extremos. Com ele, ou a coisa vai até o topo dos céus ou até todos os infernos. Ele adora o “diabólico”, o “mefistofélico”, o pungente e o bizarro: ele já produzia quase “música cinematográfica”.
Costuma-se ouvir – também em círculos especializados – que a obra sinfônica de Liszt tem pouco valor, que, na qualidade de fantástico pianista virtuose, ele talvez fosse um improvisador passável, mas nunca um grande compositor. Em especial seus poemas sinfônicos são alvo desse tipo de crítica. O que há de verdade nisso, de onde vêm tais opiniões?
Já durante a vida de Liszt havia muita crítica a suas obras orquestrais. Uma parte do público, também seus amigos – como Robert Schumann e toda a escola “clássica” – não perdoavam ele ter-se transformado de virtuose em compositor orquestral. Eles jamais compreenderam seu tipo de música de programa e seus alucinados experimentos. Nem mesmo os colegas lhe deram apoio na mesma medida em que ele os apoiara. Nem Richard Wagner nem Hector Berlioz: eles não regiam suas peças, não se bateram por ele. E há o velho preconceito de que ele deveria ter se limitado ao piano, que não tinha talento para orquestrar. Mas é preciso sempre colocar à prova esse preconceito; ele simplesmente não procede. Há obras mais fracas, também entre os poemas sinfônicos, mas, na mesma medida, há obras harmonicamente muito ousadas e arrebatadoras.
O que a fascina no homem Franz Liszt?
Liszt tinha um caráter fabulosamente nobre e soberano. Todos concordam nesse ponto, também seus adversários. Não é preciso santificá-lo por isso, como fizeram os biógrafos na época, mas apenas ver o que ele fez, como incentivou e deu apoio aos contemporâneos em cuja música acreditava; como sempre empregou para fins beneficentes o dinheiro ganho em seus anos de virtuose do piano: os músicos pobres, as viúvas e órfãos, as vítimas de catástrofes, ou ainda o monumento a Beethoven em Bonn… É impossível enumerar tudo. Franz Liszt é incomparável, em sua generosidade, seu altruísmo, e também como ser humano. Nunca houve nada assim na história da música, colocar tudo tão incondicionalmente a serviço da música e da arte, sem que o ego estivesse em primeiro plano.
Certa vez, irada, a condessa Marie d’Agoult, sua trisavó, tachou o ex-amante dela e pai de seus três filhos, Franz Liszt, de “Don Juan parvenu”, acusando-o de todas as baixezas. Há na vida de Liszt algum aspecto indigno, até mesmo misógino?
Não, de forma alguma. É preciso entender a coisa historicamente: é impensável que um gênio do piano em ascensão como ele ficasse confinado a uma situação doméstica, como Marie d’Agoult desejava, na época. Um jovem artista quer partir para o mundo, e Liszt tinha a Europa a seus pés. Ela disse parvenu [novo-rico] em meio à raiva e ao ciúme. O que chama a atenção é que Franz Liszt – ao contrário de Richard Wagner – circulava quase exclusivamente nos meios aristocráticos. É preciso considerar isso, pois, por outro lado, ele “emancipou” a música, não só do ponto de vista formal como também no sentido social. Ele não se limitou a ser um aristocrático virtuose de salão. A contradição está lá: entre um progresso na música, um engajamento pela justiça social, e a permanência nos círculos sociais restauracionistas. Note-se: ele jamais traiu a música em favor da restauração de épocas passadas. Porém, em seu apego à “etiqueta” e às boas formas, Liszt se acomodava perfeitamente à aristocracia. Porém interessante é justamente essa discrepância entre culto à forma na vida e experimentos formais na música.
Há alguma obra de Franz Liszt que lhe seja especialmente cara?
Creio que a Sonata em si menor. Acho essa peça tão louca: realizar os quatro movimentos da sonata num único movimento de meia hora! Ela nunca deixa de me fascinar.
Entrevista: Anastassia Boutsko (av)
Revisão: Alexandre Schossler