*Anderson Braga Horta – Escritor, Editor e membro das Academias Mineira e Brasiliense de Letras.
Franklin Jorge abre seu livro de ensaios com uma citação sarcástica de Shakespeare, alusiva ao perigo dos homens da pena e do tinteiro. E já na página em que nos lança em seu universo expressivo, “Da Arte do Ensaio”, trazendo à baila fina observação de Lúcia Miguel Pereira, faz-nos entender o ensaísmo como “a expressão cabal de um humanismo inquiridor, vivo e inquieto”, moldada consoante a lição de Borges, isto é, de forma a induzir o deleite do leitor; longe, portanto, de certas “fórmulas acadêmicas que se comprazem em excluir o prazer do texto”. E tece a sua teia a partir dos fios produzidos por Bacon e Montaigne, levando-nos de Oscar Wilde a Baudelaire, de Thomas Mann a Ítalo Calvino, de Saramago a Truman Capote e Sábato e Vargas Llosa.
Revolta-se contra a praga moderna dos “escritores que prescindem do convívio dos livros”, do escrever que se tornou “um exercício de frivolidade que apetece a todo mundo, inclusive aos ágrafos”. Falta-nos, depreende-se do que diz e os fatos no-lo comprovam, uma eficiente política de propiciamento de bibliotecas em todo o território pátrio, de apoio ao livro e a seus fautores, de fomento ao hábito da leitura.
Os ensaios de Franklin Jorge são breves e ágeis, mercê, decerto, de sua destinação primeira – o jornal, a revista, a internet -, mas não menos do espírito agudo e moderno que anima sua pena; e são excitantes e saborosos, como a página que dedica ao hábito do café entre os intelectuais franceses, de Madame de Sévigné a Balzac, hábito que se universalizou e, contrariando a previsão da grande epistológrafa, persiste até hoje (meio diluído, em certos casos, como no café com leite de Proust e de Borges…). Transcrevo, aliás, um trecho dessa página, como demonstração das qualidades de pensamento e de estilo do nosso ensaísta:
“Borges, de paladar pouco exigente e apreciador de sopas, considerava o café com leite uma das poucas misturas perfeitas que há. Nisso concordava o autor de Em Busca do Tempo Perdido, que no fim da vida se alimentava de café com leite, abrindo exceção apenas, em ocasiões especiais, para um prato de batatas acompanhado de uma taça de champagne borbulhante e evanescente. Era o cardápio que pedia invariavelmente no Ritz, para si mesmo, e o que comia em casa quando tinha convidados para jantar, aos quais obsequiava, no entanto, com o bom e o melhor em matéria de gastronomia francesa. Em não sendo avaro nem egoísta, não impunha sua dieta minimalista aos demais.”
Franklin defende a chamada crítica impressionista, por capaz de estimular a leitura do autor analisado, em oposição à crítica universitária ou acadêmica, em geral, segundo ele, “firmada num jargão de especialista” que a torna enfadonha e desencorajadora. Isso nos lembra o saudoso ensaísta José Augusto Guerra, que, ainda antes de 1974, quando saíram seus Testemunhos de Crítica (por sinal, pela editora da Universidade Federal de Pernambuco), tomava já –a frase é de Waldemar Lopes– “pertinaz defesa da crítica impressionista”, sobrepondo “o imponderável da expressão estética” às “rígidas leis das ciências exatas”.
Com efeito, Guerra, dotado embora de notável aparato teórico, não se conformava com a frieza objetiva dos partidários de certos métodos críticos em voga, e concluía o ensaio primeiro de seu livro exatamente com estas palavras:
“Exercício de esterilidade crítica aquele em que o crítico, apesar de todos os levantamentos do quadro literário, das esquematizações filosóficas, das sistematizações sintagmáticas, permanece enlevado à cata dos elementos objetivos e teme dizer o que pensa da obra, com medo de incidir (estranha postura científica) numa falta de natureza subjetiva.”
Para o escritor alagoano, que se radicou em Brasília e morreu tragicamente na praia recifense de Boa Viagem, aqueles críticos que não ousam julgar ou opinar não saem dos “exercícios de paciência, juntando os elementos da estrutura verbal, como se a obra de arte possa parecer mais obra de arte quando transformada em frio painel anatômico de peças soltas, diligentemente catalogadas e numeradas”.
Revela Franklin Jorge extraordinária bagagem de leitura, perspicácia na observação, desenvoltura na manifestação de suas ideias políticas e sociais, capacidade tanto de admirar quanto de combater, e o dom de despertar e manter a atenção do leitor – que não é apanágio tão-somente do bom ficcionista, mas de todo bom escritor.
Muito haveria ainda que dizer sobre este livro agradável e enriquecedor, interessante e apto a conduzir nosso interesse por entre um elenco de escritores de variada origem e diverso cariz, dignos todos de nossas estantes e de nosso conhecimento. Mas o leitor o verá por seus olhos, sem necessidade da trôpega orientação deste que é, também, um admirador atento da ensaística de Franklin Jorge.
E por aqui vou ficando, que o texto do apresentador não exceda em tamanho os apresentados…
Boa leitura!
[Brasília, 2010]
*Prefácio do livro O escrivão de Chatham [inédito].