*Alexsandro Alves
Continuando a questão da música e da poesia, dentro do panorama operístico, quero exemplificar essa questão com dois grandiosos exemplos extraídos de momentos importantes de dois dos maiores nomes da ópera (só não digo que são os dois maiores mesmo para não irromper na ira dos italianos.)…
Vamos pegar a famosa ária da Rainha da Noite, da Flauta Mágica, de Mozart: Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen (A vingança do inferno queima meu peito, é ótimo, né?); e o final da Valquíria, de Wagner, a Zauberfeuermusik (Música do fogo mágico). Vamos ver como os dois compositores tratam de maneira oposta a eterna rivalidade, e por vezes união, entre música e poesia.
Na ária da Rainha, ela surge para sua filha Pamina, que estava para ser estuprada por Monastatos. A personagem, no entanto, parece não se importar muito com o desastre que acaba de evitar e não procura saber o estado da filha, mas imediatamente a ameaça, entregando-lhe um punhal. Com esta arma Pamina deve matar Sarastro, caso não cumpra o desejo materno, ela será amaldiçoada pela mãe para sempre.
A ária de Mozart apresenta-nos um contexto unicamente musical. Tal como ocorre em qualquer ária operística, há dois temas musicais e a palavra, no decorrer da música, é parada várias vezes para que a personagem execute intensas coloraturas. Coloratura é a execução de diversas notas sobre uma mesma sílaba, o que por vezes cria um efeito hipnótico e, por outras vezes, quando as notas estão em staccato, um efeito psicótico, é o caso dessa ária da Rainha, na partitura, sobre as parte da coloratura, Mozart colocou um ponto final, na música chamado de ponto de diminuição, esse símbolo designa que a nota deve ser cantada em staccato, isto é, não devem ser interpretadas muito próximas uma da outra, como se estivessem ligadas, a impressão deve ser que as notas são cantadas como se dando pequenos saltos, como o som de uma britadeira, na figura abaixo, dentro das linhas em vermelho, os staccatos marcados na coloratura sobre a palavra mehr:
O primeiro tema é a linha inicial da ária sobre as palavras Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen, Tod und Verzweiflung (A vingança do inferno queima meu peito, morte e desespero), o segundo tema, delirante, inicia-se com a coloratura; ao fim da coloratura, Mozart dá sequencia à segunda parte da ária nas palavras Verstoßen sei auf ewig (Serás expulsa para sempre) e na sequencia retorna com o segundo tema da primeira parte, repetindo a coloratura.
A ária começa em Ré menor e a segunda parte é exatamente na tonalidade relativa desse tom inicial, Fá maior. Como uma música fechada, com começo, meio e fim lógicos, ela também termina na tonalidade inicial, Ré menor.
Em vermelho, o início da ária:
o início da segunda parte, em Fá:
e a conclusão com retorno à tonalidade inicial, Ré menor:
Durante toda a ária, o foco central foi a música, a palavra, diante de tantas exigências musicais: coloraturas, staccatos, alternâncias abruptas de dinâmicas forte e piano (suave), marcadas em várias partes da partitura como fp, notas altíssimas, que fazem com que, ao ouvido, a palavra soe ininteligível, foi esquecida em seu sentido semântico.
Antes de irmos para Wagner, a cena em questão:
Agora, Wagner. A cena é o final da Valquíria. Wotan invoca Loki, deus da trapaça e do fogo, para que este construa, magicamente, um círculo de fogo sobre o corpo de Brünnhilde. Ela, ao desobedecer as ordens dos deuses, precisou ser punida por conta dos tratados que Wotan, seu pai, representa. O castigo se trata de ser colocada para dormir eternamente, cercado por chamas. Só será despertada por alguém que seja mais livre do que Wotan.
Em Wagner, a percepção musical é bem diferente. As noções estritamente musicais de tonalidade e as exigências tradicionais para os cantores, bem como a forma equilibrada da ária tradicional não existem. Sendo assim, como o compositor consegue dar uma forma lógica a sua música, se esta não segue os padrões formais preestabelecidos pela tradição? A primeira coisa que precisamos perceber é que a ideia de tonalidade, base da música, não existe aqui. Wagner não define a tonalidade, ele vaga por tonalidades díspares, muitas vezes modulando quase de compasso para compasso. Aquela segurança musical que Mozart apresenta é esfacelada na partitura wagneriana.
Outro dado essencial é que a técnica vocal também foge das tradicionais dificuldades de canto. Agilidade dá lugar à força de enunciação e à resistência. Não há coloratura, nem muitas palavras repetidas para preencher as notas musicais. Ao invés disso, há um texto dramático, muitas vezes de frases curtas, que na prática, para ser musical, precisaria de coloraturas ou melismas, que Wagner, no entanto, não apresenta na partitura.
A linha melódica portanto, é constantemente quebrada por essas frases verbais curtas, cada quebra é uma modulação para tonalidades distantes da inicial. Isso gera uma instabilidade tonal constante na música que a faz parecer uma montanha prestes a desmoronar. Porém, Wagner consegue sustentar por horas sem fim sua composição e dá-lhe sentido. Como?
Através da subordinação da palavra e da música à ideia dramática.
A orquestra mantém um diálogo constante entre os instrumentos e com os cantores, é um oceano de sons, como definiu Wagner. Nesse oceano, ondas emergem e submergem ideias dramáticas que são combinadas conforme a necessidade do compositor. Em outras palavras, se na ópera a estrutura é dada pela música, no drama musical (wagneriano) essa estrutura é dramática.
É como uma película cinematográfica em que a ação é direcionada ao espectador pela atuação da câmera. Num filme de um grande diretor, a câmera, sua movimentação, dá o tom do filme. Assim é com a música em Wagner. Ela emerge conceitos, submerge-os em seguida, como ondas no mar, como o movimento de uma câmera de cinema. Ora um pequeno trecho musical é ouvido, depois outro, em seguida aquele primeiro retorna acompanhado de um terceiro tema, isso gera camadas interpretativas que a música pré-wagenriana não possui. Porque a música anterior a Wagner é linear em todos os seus aspectos.
A imposição do motivo condutor (leitmotiv) ao invés de uma melodia definida, possibilita essa variedade conceitual em suas composições. Um motivo condutor não é uma melodia, é uma sequencia curta de notas que surge a partir da palavra e da ação dramática.
Na cena abaixo, quando Wotan ordena Loki, hör! Lausche hieher! (Loki, escute! Venha aqui!), não existe uma melodia dentro da tradição, há uma sequencia de motivos condutores que se interligam em um contexto dramático específico. Os trombones e as tubas executam o motivo da Lança e as cordas um dos motivos associados ao fogo, esses motivos permanecem sendo ouvidos até que Wotan novamente chame Loki e bata com sua lança no chão, fazendo emergir o fogo de uma rocha, a partir daí, outros motivos emergem, associados à prisão de fogo que está sendo construída; quando a magia é concluída, ouvimos, embalado, o motivo do Sono, associado ao castigo de Brünnhlide; ao som do motivo do Sono, Wotan caminha para o centro da cena e, no instante seguinte, surge outro motivo, o de Siegfried, quando a linha vocal é a seguinte: Wer meines Speeres Spitze fürchtet, durchschreite das Feuer nie! (Aquele que temer minha lança, nunca irrompa por estas chamas vivas!) e então, todos os metais da orquestra: trombones, trompas, trompetes e tubas, erguem-se, como um coro de tragédia grega, executando o motivo de Siegfried de forma completa. Após essa enunciação, as violas e os violoncelos executam o motivo do Amor e a cena é novamente entregue aos motivos do Fogo e do Sono, que combinados podem ser denominados de Santuário. Mas ainda, no final, surge um novo motivo, o do Destino, bem pianissimo, nas trompas, trompete baixo e tuba baixo. Nas duas vezes que é executado, esse motivo do Destino consegue se destacar dos outros em nossos ouvidos como uma espécie de presságio.
Então temos Lança, Fogo, Sono, Santuário, Siegfried, Amor e Destino, sete motivos musicais que emergem e submergem a partir de sua necessidade no drama, nenhum deles está desenvolvido melodicamente. Abaixo, a cena.