*Enrique Vila-Matas
E quanto à intuição sombria do futuro, estranhamente escondida ao longo da luz fria de Syrtes? Gracq sempre ficou fascinado por uma cena muito secundária em Macbeth, quando Duncan avista o castelo onde será assassinado. Por que esta passagem? Gracq diz: “Porque ele sente.”
E o que dizer da lenta espera que atravessa a trama de O Mar de Sirtes e nos aproxima da terrível premonição do futuro estéril que aguarda o Ocidente? O romance é, na verdade, uma aproximação surpreendente do que está acontecendo conosco agora. É a narrativa de declínio brutal e angústia. É literatura de percepção, não profética. Ao longo de O Mar de Sirtes o leitor encontrará uma sucessão de iluminuras de origem rimbaudiana. Gracq mostra uma sabedoria especial na percepção do futuro, como se soubesse que um aspecto muito sedutor da literatura reside em ser como um espelho que avança: um espelho que, como alguns relógios, tem a capacidade de avançar. Kafka foi um bom exemplo disso porque sentiu, percebeu onde evoluiria a distância entre Estado e indivíduo, máquina de poder e indivíduo, singularidade e coletividade, massa e ser cidadão.* O livro de Gracq não se situa apenas nesta corrente de escritores. com espelhos que se apresentam, mas parece conhecer o centro do nosso problema atual: a situação de impossibilidade absoluta, de impotência do indivíduo diante da máquina devastadora do poder, do sistema político. Essa é precisamente a paisagem moral e literária que há mais de meio século prefigurou O Mar de Sirtes, onde o gênero romance é abordado como o gênero supremo da utopia e como um instrumento ideal para mais uma vez dominar a irrealidade em uma época em que deveria realmente perder o significado.
Toda esta atmosfera gracquiana atinge o seu ápice quando, no famoso sétimo capítulo, vemos surgir, fantasmagórico, o vulcão Tängri, uma montanha emergindo do mar, um cone branco e nevado flutuando como uma aurora lunar sobre um tênue véu roxo que aparece no horizonte. O grande Gracq está totalmente lá, aí temos ele apontando diretrizes e alinhado com a melhor narrativa atual. Às vezes, as suas palavras sobre o vulcão, aquela mesma iluminação rimbaudiana, evocam em mim a calma e a dignidade do próprio Gracq e o seu papel de farol e líder imaginário da renovação das tendências narrativas: «Lá estava ele, lá o tínhamos. Sua luz fria irradiava como uma fonte de silêncio, uma professora na noite deserta.
Enrique Vila-Matas
Julien Gracq e a percepção do futuro