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Escrevi, mas não fui eu

Dividida entre a escrita e o teatro de ideias, Prêmio Nobel discute aspectos conceituais da literatura

*Simone de Mello

Transcrito de Dw-Worl.de

A escritora austríaca Elfriede Jelinek lança novas questões sobre a veiculação da literatura com o romance privado ”Neid” (Inveja), um livro publicado exclusivamente na internet.

 Não é de se desprezar o quanto a discrepância entre pessoa pública e privada pode perturbar um indivíduo. No caso da Nobel de Literatura Elfriede Jelinek, que qualifica de patológica sua aversão a aparições públicas, este é um problema declarado. Em um “romance privado” publicado em capítulos esporádicos na internet, certamente a mídia de maior alcance público, a escritora austríaca reflete literariamente o evento da publicação.

 “Isso significa que o romance não apenas é publicado de forma privada, numa auto-editora, digamos, mas também o inverso, que no texto se infiltram mais assuntos privados que de costume”, explicou Jelinek sua noção de “romance privado”, em entrevista ao jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung. Ela já lançou no seu site dois capítulos do romance Neid (Inveja), o terceiro do ciclo sobre os sete pecados capitais.

Arquivo temporário

Ao lançar um texto literário na internet, o autor certamente está menos protegido e tem um controle menor sobre a propagação pública da obra, em comparação com um livro impresso em papel, cuja esfera de circulação é bem mais reduzida. Isso parece exacerbar ainda mais a preocupação da escritora com os direitos autorais. No fim de cada página, o leitor se confronta com a seguinte advertência: “Todos os textos aqui reproduzidos são protegidos pela lei de direitos autorais e não podem de forma nenhuma ser citados ou reproduzidos sem autorização explícita”.

Por outro lado, Jelinek – que já anunciou que este romance jamais será impresso – explica por que se sente protegida por trás desta nova forma de publicação. Um documento divulgado na internet pode ser apagado de uma hora para outra, como se nunca tivesse existido.

No ritmo da criação

“Caso eu fracasse ou acredite ter fracassado, reservo-me o direito de deixar o romance inacabado,  ou reescrevê-lo a posteriori. Ou simplesmente retirá-lo da rede, caso eu não suporte que ele fique lá me olhando bestamente de dentro da tela”, declarou Jelinek ao FAZ. Portanto, a impermanência dos conteúdos na internet também pode servir de proteção a criações literárias in progress, não mais expostas à validade permanente da palavra impressa em papel.

Ao contrário de um romance em série, cuja publicação gradativa geralmente é utilizada para aumentar o suspense (“aguarde o próximo capítulo”), a divulgação de Neid segue o ritmo da criação, sem destino certo. Após Lust (Luxúria, 1998) e Gier (Avareza, 2000), Jelinek se dedica à inveja, inspirada pela representação dos pecados capitais por Hieronymus Bosch, numa pintura pertencente ao acervo do Museu do Prado, em Madri.

Absolvição católica

“Trata-se da inveja daqueles que não conseguem viver, como eu, para com os vivos, dos quais tento tratar paradigmaticamente. Não estou morta, mas me sinto uma morta viva, porque – em decorrência da minha doença psíquica, sobre a qual não quero me estender – não posso viver, não posso viajar e não suporto gente. Também não consigo suportar que olhem para mim. Foi esta forma de estar morta-viva que me levou a publicar e ao mesmo tempo não publicar.”

Em Neid, Jelinek retorna ao cenário de sua infância, uma região de extração de minério na Estíria. O ambiente cristão austríaco também pesa no romance. E talvez o escape católico de confessar os pecados e ser absolvido também norteie este romance a ser escrito e possivelmente apagado.