*Francisco Alexandro Alves
A chuva permanecia inclemente quando avistei um centro paroquial aberto, naquela noite de segunda-feira, 18. Ao buscar abrigo ali, dividi o ambiente com mais três pessoas. Três mendigos. Dois homens e uma mulher. Estavam sujos, muito sujos. Deles emanavam um odor tão fétido e seboso, tão forte, que o ar ao redor, mesmo naquela chuva, estava quente. Um calor inconfortável e fedorento, abafado. O odor de corpos que não tomam banho.
A mulher gritava sem parar, “Daniel, Daniel”, enquanto batia no ombro do rapaz, que presumi ser Daniel. Ela não estava bem mentalmente, mas era pela fome. Ele, bastante triste, falava das bençãos dos céus. De uma harpa que há no céu, que toca sozinha e de que como os salvos cantarão a vida inteira para Deus. Segundo ele, ele estará entre os salvos: “Eu não sou besta!”, dizia, tentando rir.
O terceiro mendigo permaneceu todo o tempo calado e deitado no chão nu e duro. Era o único que possuía um cobertor, mas, mesmo assim, seus pés estavam para fora. Pretos de sujeira e rachados, com unhas amareladas. Não possuíam todos os dentes e seus lábios estavam incrivelmente molhados. Daniel, muito falante, também me apresentou seu trabalho de “artesanato”, segundo ele.
Apenas Daniel falava. Daniel, em hebraico, significa “Deus é meu juiz”. E observando a imundície e a pobreza extremas daqueles três, me lembrei de Calvino e de Paulo. Calvino pregava que a riqueza era uma demonstração da salvação predestinada ao crente. E Paulo dizia que “quem não quer trabalhar, também não deve comer”. E aqueles ali, pobres e famintos, fedorentos e loucos, se salvariam? Olhei para dentro do centro paroquial, que estava aberto, e uma visão claríssima limpou meus olhos: mulheres alvas, laquês explodindo, sorrisos refinados, e aquelas conversas de milagres! “Deus é maravilhoso! Minha neta recebeu a Crisma”.
Será que o juízo já estava sendo feito? Naquele mesmo espaço de fé, uns enlouqueciam de fome e sujeira enquanto outros se deslumbravam com rituais, atribuindo aos mesmos, forças milagrosas e intervenção divina. Eu nada senti ou condenei. Não senti nada pelos mendigos, nem condenei os ricos. Como poderia condenar os ricos, se eu mesmo sequer ajudei àquela escória humana que estava ao meu lado?
Todos falavam para mim naquele momento. O sociólogo falava; o prosador falava; até o poeta quis uma lasquinha. E todos permaneceram impassíveis. Eu não me senti responsável. Olhando para os dois grupos, os negros fedorentos e as brancas sorridentes, imaginei Deus como a natureza! E o pássaro despedaça a lagarta, a leoa devora a zebra, o pelicano pesca o peixe, a aranha captura o mosquito… a natureza é Deus. E o homem é o quê? Apenas carne que tem consciência que pode sonhar.
A mulher de Daniel, mesmo no frio e na chuva, começa a gritar por água. Está com sede! Daniel levanta e, com uma jarra de plástico nas mãos, vai para o meio da chuva e coloca a jarra sob uma bica. Perguntei: “Por que você não pegou água da torneira?”, a mulher gritou: “Eles não deixam a gente entrar!”
Deus é maravilhoso. E que milagre, minha neta hoje foi crismada. E quando a chuva de graças terminou, foi para minha casa. Tomei banho e jantei. Quando a chuva reiniciou, novamente forte, eu já estava bem alimentado, ocupado no computador, com meus pets bem alimentados e limpos, com minha casa limpa, aconchegante e que me protege sempre das chuvas. Os mendigos estavam lá. No frio. Famintos. Loucos. Sujos.
Me lembrei de Calvino e de Paulo. Aqueles mendigos nasceram e foram bebês, foram crianças. Brincaram. Riram. Como eu. Iguais a mim. E agora estão desprotegidos, com frio e famintos. Falam de Deus e esperam. Que mundo é esse, onde a Crisma fala mais do poder de Deus do que alimentar quem tem fome? A não ser que Deus seja a natureza: impassível, amoral e do mais forte.