*Edilson Alves de França
(Sub. m: do lat. status, c/c gr. demokratia.)
- Direito
Logo no preâmbulo da nossa Lei Maior, se tem explicitado que coube à Assembleia Nacional Constituinte: “… instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social…”
Diante dessa ampla formulação constitucional, nunca escapou dos mais atentos que o Estado democrático de direito volta-se para uma múltipla e principiológica garantia, destinada a fazer valer todas essas prerrogativas, especificadamente referidas na nossa preambular bússola constitucional. Tanto é que, na sequência, o art. 1º da mesma Lei Maior, assegura que a República Federativa do Brasil incorporou esse Estado democrático de direito, tendo como fundamentos explícitos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, além do pluralismo político.
Mais adiante, também diferentemente do que procuram fazer crer alguns atores da impunidade, os objetivos fundamentais dessa democrática República Federativa do Brasil, de forma expressa, são enumerados pelo art. 3º da Constituição, na seguinte ordem: a) “construir uma sociedade livre, justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; d) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Como facilmente se observa, o Estado democrático de direito não pode, nem deve, ser confundido com mera peça cenográfica ou com fajuto “álibi de ocasião”. Mesmo que seus atores tentem, por todos os meios, escapar do que resta do inesperado dilúvio de águas benzedeiras que, em boa hora, “lavaram a jato” significativa parte da corrupção do Brasil.
Muito ao contrário, esse Estado democrático ressoa do referido preâmbulo constitucional como ampla orientação interpretativa, autêntico reino do direito, a ser complementado pelas leis emanadas dos órgãos encarregados de instituí-las na ordem infraconstitucional. Como ensinam os hermeneutas dignos desse título, não se interpreta a lei escolhendo as fatias que agradam ao paladar dos seus dissimulados infratores. Muito menos, se deve distribuir esses desejados nacos, com espertalhões ávidos por escapatórias furtivas, moldadas na criativa fôrma das conveniências pessoais, ofensivas à igualdade e aos demais valores supremos que o próprio Estado democrático de direito assegura.
A propósito, verdadeiros juristas, democratas autênticos e aliados na luta pela sonhada justiça social, sabem perfeitamente que o Estado democrático, na abrangência que lhe é peculiar, significa muito mais que mera escada de incêndio para corruptos e malfeitores. Ao contrário do que defendem devotos articulistas da conveniência profissional, esse cogitado estado de graça criminal não existe. Principalmente como pessoal e pródigo cartão corporativo de aquisição gratuita da passagem de volta para o famigerado “paraíso” da corrupção difusa.
Não custa lembrar que a efetividade do equilíbrio entre os princípios constitucionais, inerentes a esse mesmo Estado democrático, exige que não se abandone a igualdade na busca pela efetividade da função jurisdicional penal. Até porque, convenhamos, essa atividade deve observar valores igualmente caros, não somente aos acusados de corrupção, mas, evidentemente à toda sociedade, merecedora do amparo propiciado por esse amplo e complexo sistema de justiça social, garantido pela Constituição.
Não devemos esquecer que, no âmbito do combate à corrupção, como verdadeiro infortúnio nacional, uma nova percepção do direito, iluminada pelo instituto da mutação constitucional1, tem brotado de mentes mais equilibradas do que pensam alguns amantes da impunidade. Sobretudo por se ter evidenciada uma grande quantidade de recursos protelatórios, bem exemplificados nos famosos “embargos nos embargos dos embargos”, transformados em demeritório chiste jurídico. Sem falar que, diante da inviabilidade do reexame de provas na superior instância, o ato de recorrer por recorrer, deve ser entendido como verdadeiro achincalhe processual.
De olho na melhor doutrina, sempre se faz recomendável lembrar, como assinala José Afonso da Silva2, que “… a tarefa fundamental do Estado democrático consiste em superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social”. Por isso mesmo, quando a Constituição prestigiou o termo “democrático”, procurou, segundo Miguel Reale3, alcançar “… um Estado de direito, de justiça social, com base nos valores fundamentais da comunidade”.
Ainda ao contrário do que pensam alguns exclusivistas da defesa criminal, o Estado democrático de direito, repita-se, não se constitui via adequada para o livre trânsito de chicanas propiciadoras de “vistas a perder de vista” ou de recursos flagrantemente protelatórios. Muito menos, para viabilizar a alegativa infundada de inoportunas suspeições anulatórias, prescrições ou outros expedientes meramente ababelatórios, capazes de revelar que, nem sempre, todos são iguais perante a lei. Ademais, não devemos esquecer que quando iniciativas dessa natureza provêm do malfadado território da fantasia jurídica, sem qualquer vínculo principiológico com a devida orientação constitucional, não fica difícil observar a presença de um injustificável desprezo pela devida igualdade processual.
Com efeito, se o direito nunca admitiu a rigidez aristotélica do dois mais dois igual a quatro, com mais razão, não deve aceitar, em nome de um suposto Estado democrático, essa nova equação fatiadora dos direitos e garantias fundamentais. Até porquê a soma dos interesses da sociedade com os de alguns criminosos –independentemente da cor do colarinho –, revela-se impraticável diante da tabuada constitucional. Principalmente quando o povo permanece sob o sol e a chuva, desamparado e mal alojado na programática estação do esquecimento4. Pior que isso: à espera do seletivo trem que permanece levando ilustres e endinheirados corruptos para o Estado democrático da desigualdade.
Confirma-se, assim, uma contraditória intermitência jurídica que vem postergando – desde o século passado – a plena aplicação dos prometidos direitos sociais e individuais, tal como expressa a Constituição da República. Nunca restou tão alargada a assertiva popular de que “promessa é dívida”. Infelizmente, no atual contexto, as dívidas constitucionais do Estado-legislador estão sendo adaptadas a um malfadado modelo de precatório infinito. Instituto velhaco e bem conhecido nas redondezas do direito dito programático, beco sem saída para os esquecidos inquilinos do Estado, dito democrático e de direito.
1- Esse princípio foi largamente debatido, quando o STF discutiu o cabimento da prisão após julgamento em 3ª instância
2- SILVA, José Afonso da. In Curso de Direito Constitucional Positivo. Edt. Malheiros-SP,1999, p. 123
3- REALE, Miguel. In O Estado Democrático de Direito e Conflitos Ideológicos das Ideologias. Edt. Saraiva-SP,1999, p. 2
4- Ouvido a respeito, “preto Zezé” repetiu o que todos nós sabemos: “Na favela não há Estado Democrático de Direito”. Cf. Revista Istoé, nº 2654 de 25/11/2020, p. 14.