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Esterilidades teológicas

O professor de filosofia Valdemar Munaro escreve sobre cristianismo à luz da filosofia kantiana, de como Kant usou a religião para seus conceitos sobre ética.

*Valdemar Munaro

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O prussiano, Immanuel Kant (1804) herdou de seus mestres e progenitores uma espiritualidade pietista cuja liturgia esquivava-se de instituições religiosas e clericais. O filósofo, refinado e astuto intelectual, usava palavras doces e respeitosas quando se referia a Jesus Cristo. Chamava-o de ‘Santo do Evangelho’. Na intimidade de sua alma racionalista, porém, rejeitava sua natureza divina e não levava a sério suas palavras redentoras, seu amor, nem seus milagres. O Nazareno, para Kant, representava apenas um exemplar humano de magnífica vida moral.

Contudo, quando a doutrina ética kantiana penetrou as veias da teologia cristã, produziu duas catástrofes emblemáticas: embretou a fé religiosa nos limites frios da racionalidade e utilizou da mesma para convencer eticamente aqueles que julgava como ‘menores’ intelectuais. Com tais efeitos, cresceu no seio da Igreja o designado teísmo moral.

Os escritos kantianos parecem vir de autor ‘manso e humilde’, mas, na verdade, sua filosofia é orgulhosa e arrogante, iluminista e perigosa aos metafísicos e crentes. O magistério da Igreja Católica, em 1827, de fato, considerou Kant um velado ateu e multiplicador deles. O fiel cristão que se aproximar da doutrina kantiana e a aceitar como suporte teórico para sua fé, terminará por confiar num Deus inexistente e ilusório. Coisa esquisita e paradoxal: Kant não confia em religião alguma, mas utiliza a ‘idéia religiosa’ para ser bengala de persuasões éticas.

Justamente, no condomínio do pensamento kantiano encontramos uma fé oca, formal, conceitual, idealista e vazia de conteúdo real. De Deus, pensava Kant, nada podemos saber nem obter, tanto menos escavar razões para crer e confiar, mas a ‘ideia’ que Dele tivermos, pode ser proveitosa e útil, sobretudo nos quesitos relacionados à vida moral e à educação.

Ora, confiar em verdades que não existem se assemelha a socar ilusões e fantasias ou a dar crédito a ficções. É outorgar às miragens um papel educativo que beneficie e impulsione as condutas morais. A sequência “esquisitóide” dessa manobra racional kantiana foi a obtenção de fés adornadas e enfeitadas com a figura de Cristo. Ou seja, o ‘Santo do Evangelho’ se tornou apenas uma ideia para servir de estímulo a motivos revolucionários e morais.

O ‘caso’ Cristo, assim, virou uma fotografia útil para qualquer coisa, inclusive para a vida moral e fraterna. Teólogos da libertação, endemicamente kantianos, subsidiam teologias com estilo similar: sob vestes e adornos cristianizados, têm cabeças e estratégias doutrinárias que propõem ideais fraternos surrealistas utilizando a figura do Filho de Deus, Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado, como ornamento corroborante, não como causa da fraternidade.

Rudolf Bultmann (1864 – 1976), o mais kantiano dos teólogos protestantes do último século, muito ligado ao suiço Karl Barth (1886 – 1968) e ao seu conterrâneo e amigo, Martin Heidegger (1889 – 1976) fez um trabalho monumental de demitização das Sagradas Escrituras visando depurar o essencial das narrativas bíblicas de suas formas literárias míticas.

No fim do seu labor, Bultmann afastou-se do Jesus histórico para se aproximar do Jesus da fé. Isto significa que, para ele, os fatos sobre Jesus e seus ditos, tais como nos contaram os evangelhos, podem ser dispensados da vida cristã, porquanto não há como verificar e comprovar empiricamente a veracidade das fontes. O que sobra como valor e utilidade, segundo Bultmann, é o Cristo da fé, isto é, o Cristo ‘preservado’ na memória e no pensamento dos crentes, ocorrendo então, uma inversão da lógica religiosa: são os cristãos que mantêm o Cristo da história e não o Cristo da história que mantém os cristãos.

Vê-se que, por esse percurso, Bultmann transformou a fé cristã num ato de confiança que se enraíza num vazio de incertezas e irrealidades. As coisas, pensava ele, provavelmente não foram assim como os Evangelhos nos contaram; apesar disso, continuam válidas na forma de cabides onde se penduram ideias e pensamentos. A fé no Cristo, vazia de conteúdo real, pode ser, mesmo assim, útil e necessária à vida ética humana, subsistindo apenas como pensamento e memória na vida dos crentes.

Bultmann levou até às últimas consequências o ofício kantiano que foi o de utilizar o Senhor Jesus unicamente para fins morais e pedagógicos. O Cristo Ressuscitado, para esses senhores, não é o Deus que deve ser amado, adorado, escutado e seguido, mas é a figura da encarnação moral para ser usada como persuasão ética. Seu papel: alavancar a vida moral dos homens. As ideias religiosas, segundo Kant, são boas e úteis na medida em que servem ao agir ético. A ética finalmente, aqui, acaba por engolir a religião.

Como se vê, o iluminismo kantiano pôs um fim à dramaturgia cristã. Depurando e expulsando do recinto sagrado o amor de Cristo, seus milagres e os mistérios que envolvem sua paixão, morte e ressurreição, Kant jogou a Revelação Cristã no túnel da pólvora moral e de seus conflitos.

Teólogos da libertação, por sua vez, bicados pelo vírus kantiano, de modo simiesco, adicionam Jesus às fraternidades morais que propõem. A amizade social, meta da campanha quaresmal 2024, é um convite dirigido a todos os homens de boa vontade para que exerçam boa convivência e se sintam irmanados de um jeito a não excluir ninguém de seu horizonte. Desse modo, se todos colaborarem para esse fim, certamente Cristo também poderá fazê-lo e seremos ‘felizes para sempre’.

Tem-se um abrumado sentimento de esterilidade e tristeza quando se manuseiam os textos das Campanhas da Fraternidade, cujos autores, em geral anônimos, buscam e oferecem receitas mágicas à prática da fraternidade. A inutilidade de tais páginas é patética…

As vestes kantianas que os cobrem duram já mais de 60 anos e continuam carregadas de mandamentos catequéticos e moralistas, não garantindo, porém, a eficácia ou conversão de seus leitores. os que os redigem se parecem a ‘corpos religiosos’ portando estandartes maniqueus recheados de medíocres e recorrentes apelos prometeicos misturados a palpites de economia e política. Neles, os textos, raramente se garimpam meditações que verdadeiramente conduzem o destinatário ao encontro dos mistérios da paixão, morte e ressurreição de Jesus.

O dinamarquês S. Kierkegaard (1855) já denunciava o vilipêndio sofrido pelo manto de Cristo quando líderes religiosos submetiam a missão profética e apostólica à funcionalidade da política e da moral. Se quereis matar o vigor do apóstolo, dizia Kierkegaard, transformai-o em funcionário religioso.

‘Vendilhões’ templários, ainda hoje, negociam o sacrifício de Cristo às conveniências benevolentes do poder estatal. O episódio da missa em louvor ao ingresso de Flávio Dino no STF e o abraço de membros da CNBB dirigidos a ele (ex ministro da justiça, comunista, bajulador de Stalin e admirador de Mao) indicam o grau refestelado de nossos pastores no rol das arenas políticas militantes.

Enquanto para Kierkegaard o Cristo não é um adorno, nem enfeite, mas causa e razão da fraternidade cristã, pois Nele, com Ele e por Ele é que podemos fraternar, F. Nietzsche (1900), por sua parte, como observa Kolakowski, morreu ‘convencido que a ciência havia roubado do mundo, e também da história humana, seu sentido, de que Deus havia abandonado o universo para sempre e que nunca mais encontraria um substituto para Ele. A dignidade que nos permite aceitar a verdade e desafiar, por meio de atos criadores, o vazio do Ser, era para ele a única maneira de suportar o peso de uma vida sem ilusões’.

Um mundo sem Deus e sem amor nos conduziria ao suicídio ou à loucura. Sem eternidade, não haveria temporalidade, nem sentido ao que fazemos e somos. Estaríamos fadados ao extermínio niilista da morte.

Um mundo sem Deus e sem ressurreição não serve a nada, nem a qualquer trabalho, esforço ou fraternidade. Se Cristo apodreceu no túmulo e não ressuscitou, vã seria nossa fé e sem sentido nosso amor. A que serviriam imortalidades e fraternidades se não houvesse Deus? A que nos serviria Deus e seu Filho crucificado se não fôssemos participantes de sua ressurreição?

Anemias antropológicas sobressaem nessas doutrinas que analisamos. Desconhecendo a perturbada alma dos que estão à sombra do pecado e da morte, da dor, dos sofrimentos, dos infortúnios, dos ressentimentos, das culpas e remorsos, os engenheiros da fraternidade ignoram as incapacidades humanas de amar e perdoar, desconhecem a força da malícia e da preguiça, o poder da inveja e da vaidade, a bigorna do orgulho e do egoísmo, as feridas do desespero e da solidão. Ignoram as fragilidades, as contingências, as traições, as promessas não cumpridas, as hipocrisias e as mentiras que rondam as portas dos corações humanos, sem exceção. Kantianos e marxistas creem em suas catequeses e conscientizações como se fossem capazes, por si só, de gerar homens novos e justos. Mas se enganam.

A fraternidade cristã não nasce da arte psicológica, nem da boa convivência, por mais refinadas que sejam, nem de articuladas diplomacias, nem de doutrinas adjacentes. Nascem, ao invés, do encontro com o Senhor Ressuscitado cujo sangue de cruz realizou o amor incondicional. Só Ele pode nos dar esse amor impossível: o amor que dá a vida a inimigos. Sem esse amor, a fraternidade permanece barateada e inflacionada pelo baixo custo. Estas podem ser encontradas nas esquinas e quintais, em ambientes diplomáticos e festivos, no afeto da parentela e, sobretudo, nos jardins políticos dos simpatizantes e agremiados.

Ninguém é obrigado a ser cristão. Aquele, porém, que desejar um dia sê-lo, somente o conseguirá, lavando suas vestes no ‘sangue do Cordeiro’ para moldar seus comportamentos a Ele. Os que vivem de sua graça não precisam de moralismos e os que vivem de moralismos não precisam de sua graça.

Idealistas das CFs enchem a pandorga com suas engenharias sociais e seus mandamentos impossíveis. Promotores das Campanhas da Fraternidade, vos pedimos: dai-nos o Cristo, pois só Ele possibilitará em nós a fraternidade que apregoais! De moralismos kantianos e hipócritas estamos fartos.

 

 

 

*O autor, Dr. Valdemar Munaro, é professor de Filosofia.
Santa Maria, 22/03/2024