*Alexsandro Alves
A questão do sofrimento animal é seriamente abordada por Morrison. Não há sentimentalismo barato aqui. Há muita poesia e mágoa sinceras em relação aos caminhos tortuosos aos quais a racionalidade levou e leva a condição humana e a vida das outras espécies animais.
Em “O evangelho do Coiote” (EUA, DC, Animal Man #5, 1988; BR, Ed. Abril, DC 2000 #7, 1990), Morrison nos convida a entrarmos no mundo de Looney Tunes. O Coiote, do desenho animado do Papa-Léguas, vive em mundo onde “animal se volta contra animal”, nas palavras do próprio escritor. O Coiote fica chateado com toda essa briga que nunca tem fim entre as espécies e resolve falar diretamente com seu Deus. Vai para o deserto e lá ascende aos céus e conhece o seu Criador. O Coiote fala da dor que é viver em um mundo onde os animais se agridem, mas o seu Criador fica zangado com os protestos e resolve punir o Coiote.
Ele envia o animal para o nosso mundo e diz para ele que o seu mundo ficará em paz para sempre, desde que ele sofra por seu mundo eternamente. Ele vai viver em nossa realidade, vai sofrer e ser morto, mas ressuscitará e novamente sofrerá e morrerá e ressuscitará eternamente, fazendo isso os animais do mundo do Coiote ficarão em paz. É uma história com uma metalinguagem refinada, o Criador que o Coiote conhece é o próprio Morrison. E essa história provocou protestos de agremiações religiosas nos EUA.
São nesses momentos que a melancolia de Morrison, sempre presente em suas melhores páginas, alcança os nossos olhos e despenca em torrentes de lágrimas.
Como vimos, a metalinguagem é outra característica de Morrison e encontra uma construção habilidosa nas páginas do Homem-Animal, e culmina na apoteose de “Deus Ex-Machina” (EUA, DC, Animal Man #26, 1991; BR, Ed. Abril, DC 2000 #36, 1992) onde Buddy reencontra Grant Morrison, mas agora não como um deus, mas apenas um escritor, que lhe revela que seu mundo é uma fantasia criada por uma empresa. Na verdade, podemos afirmar que os 26 números que Morrison escreveu para Animal Man são em forma de um gigantesco diálogo metalinguístico entre o mundo dos quadrinhos, personificado por Buddy e o nosso mundo, personificado por Morrison, com incursões pelo mundo dos desenhos animados.
Essa fase é uma das melhores em qualquer época das histórias em quadrinhos. Não apenas do Homem-Animal ou da DC, mas da arte sequencial como um todo; Morrison é um escritor de alta estirpe, poeta metalinguístico sem concorrentes e defensor de causas políticas que o colocam como ícone de boa parte dos leitores de hqs. Suas histórias a princípio sempre são deslocadas e parecem caminhar sempre para a dissolução em um abismo, como ele mesmo diz para Buddy no número 26, o último que escreveu da série. Mas à medida que as páginas vão se sucedendo, percebemos que estamos diante de um quebra-cabeças maravilhoso e que apenas o tempo pode fazer com que cheguemos a uma compreensão do todo. Ele sempre vai por partes sem se preocupar, aparentemente, com o momento seguinte, alongando o tempo, construindo uma trama que se solidifica mais à medida que avança.
Animal Man de Grant Morrison faz parte daquelas leituras obrigatórias que cada forma de arte possui e que são capazes de mudar a maneira como pensamos e vemos o real.
E o mais agradável nisso tudo é a maneira quase coloquial com a qual Morrison nos apresenta temas complexos e os desenvolve. As tramas se iniciam com uma simplicidade bem construída e página após página, vão tomando contornos cada vez mais insuspeitos, e Morrison nos mergulha num vórtice de ideias e afetos, atiçando nossos neurônios e nosso coração.
Todas as 26 edições de Animal Man, por Grant Morrison, ganharam várias edições aqui no Brasil. A primeira delas foi pela Editora Abril, nas páginas da revista mensal DC 2000. As edições mais recentes são da Panini: as 26 edições reunidas em três volumes em capa cartonada e papel LWC, e uma outra edição, única, e em capa dura e papel couché com todas as 26 edições em um calhamaço de 712 páginas.