*Alexsandro Alves
PARTE 2: Advento.
Mas uma geração assim não poderia passar sem uma crítica, e uma crítica negativa, contra a estupidez institucionalizada. E nenhuma editora poderia fazer isso melhor do que a DC Comics. Por quê?
Verdade e justiça.
Essas palavras, para qualquer amante de hqs do gênero super-herói remetem imediatamente aos icônicos personagens criados entre o final da década de 30 e inícios da de 40 do século XX: Super-Homem (vou me dar a esse prazer de chamá-lo assim, como na minha época de guri gibizeiro), Batman e Mulher-Maravilha, ou à Liga da Justiça inteira por extensão.
Mas nenhum personagem encarna esses ideais de forma tão conscientemente perfeita quanto o Último Filho de Krypton. Essa história de Waid e Ross é dele e é sobre ele, na medida em que analisa conceitos como moral e ética na conduta dos super-heróis.
Não existe personagem que encarne esses ideais como o caipira que se torna jornalista chamado Clark Kent encarna. Bruce é atormentado demais, e isso não é de Miller, está desde a gênese em Detective Comics 27; Diana não provém de uma cultura alienígena, como Kal-El, mas mesmo assim, o kryptoniano tem uma bagagem cultural terráquea imensa que Diana não tem. A princesa amazona, embora de uma cultura da Terra, sempre permaneceu isolada do restante da humanidade.
Clark ganhou, graças à educação de seus pais e professores, uma bagagem humanista imensa. Lembro de uma cena de Man of Steel (embora o filme seja do século XXI) em que Clark segura um exemplar de um livro de Platão. Humanismo.
Quando abrimos o número 1 da revista (“Reino do Amanhã” é uma minissérie em 4 partes), lemos trechos da Bíblia retirados do Livro do Apocalipse de São João, imagens de uma águia, de um morcego, de raios e trovões saltam aos olhos enquanto lemos os assombrosos relatos do apóstolo. Cada exemplar dessa saga se inicia assim, com uma leitura da Bíblia.
Porque há um tom religioso e grave aqui. É uma obra de leitura pausada, como o movimento lento de uma sinfonia. Meditativa e ao mesmo tempo intrigante. No primeiro número conhecemos um futuro do Universo DC. Os super-heróis antigos estão aposentados e uma nova geração de heróis, alguns descendentes dos icônicos personagens já supracitados, transformaram o planeta em uma festa de rave insana sem fim. A motivação para a desistência generalizada da atividade heroica entre os grandes nomes da Liga da Justiça foi a aposentadoria do maior super-herói de todos os tempos, o Super-Homem. E por que ele abandona a atividade heroica?
O Coringa invade o Planeta Diário e mata todos, inclusive Lois Lane. Super-Homem vai ao encalço do psicopata, mas Magog, um herói jovem e em ascensão, chega primeiro. Esse Magog faz parte dessa nova geração de heróis descontrolados e sem senso ético algum. Super-Homem confronta Magog, exigindo que lhe entregue o Coringa e, assim, possa levá-lo de volta para a cadeia. Magog deseja matar o assassino. No diálogo que se segue, o povo acaba escolhendo o discurso violento e punitivo de Magog. Super-Homem fica horrorizado e se afasta cada vez mais de sua atividade, permanecendo em sua fazenda no Kansas.
Essa edição inicial contém uma profundidade típicas dos quadrinhos da DC Comics – quando a editora quer realmente fazer algo significativo.
Primeiramente, a questão das instituições. Mesmo o Super-Homem não consegue lidar com o terror popular e a sede de vingança contra o predomínio da justiça que um ato de tamanha magnitude de um criminoso tende a gerar. A escolha do povo por Magog simboliza a falência das instituições ou pelo menos o crédito popular nas mesmas. O povo já não confia mais nos alicerces que constroem uma sociedade. Mas a escolha pela violência vingativa, embora que contenha uma dose catártica imensa, o horror sendo pago com outro horror, na verdade gera mentes arruinadas democraticamente, e o preço é a própria sanção punitiva da liberdade. A violência justiceira e escolhida como forma de justiça popular gera uma liberdade baseada e desenvolvida não no respeito à vida, mas na idolatria da satisfação dos próprios ímpetos. E isso é o que a sociedade, pós saída de cena do Super-Homem, experimenta.
Os novos heróis são seres descontrolados e incapazes de estabelecer qualquer vínculo empático com os outros homens. Eles agem pelo prazer. Pelo prazer da batalha. Pelo prazer da violência do mais forte sobre o mais fraco, pelo prazer de ser humano transformado em ser natural, destituído de qualquer elemento cultural que não seja o ímpeto para a destruição.
Eles se embriagam na violência, como diria Nietzsche. As cenas no primeiro capítulo quando um jovem super-herói arremessa um ônibus lotado contra um vilão mais parece uma briga de gangues rivais de futebol.
Segundo, o advento de Magog. A escolha do povo por Magog só foi possível porque a sociedade permitiu seu surgimento. O mal não nasce isolado no homem, nasce em sociedade. A partir dela o mal assume as mais variadas formas. Sempre vai ser mais fácil a violência do que o diálogo, disso não temos dúvida. É a escolha pelo Nazismo na Alemanha; pela bomba atômica entre os militares americanos; pelo ódio midiático que não respeita sequer a morte de entes queridos no atual momento brasileiro.
Magog é a personificação das coisas mais fáceis e agradáveis em nós humanos: a violência, o ódio, a demasia e a brutalidade. É como se no íntimo desconfiássemos de nós mesmos. Como se soubéssemos que amamos o mal, mas o guardamos e o disfarçamos, até que surja alguém com coragem o suficiente para assumir essa maldade e assim, representá-la socialmente. Aí abraçamos sem o menor pudor a espada que corta sem distinção. Magog é o caminho da violência e do ódio como meio de aplacar o mal. É como se preferíssemos a tortura como meio de justiça. A liberdade se torna apenas pretexto para atos cruéis.
Terceiro ponto. A dificuldade do diálogo não é uma questão apenas desses jovens heróis ou das escolhas infelizes dos homens. Super-Homem também padece desse mal. Talvez o isolamento que se autoimpôs tenha agravado mais ainda a tristeza que amargurou sua alma desde o advento de Magog. Sua ação política contra os vilões, quando em determinando momento decide retornar, consiste em trabalhos forçados em novos gulags. O gulag foi uma criação soviética para punir dissidentes políticos. “Reino do Amanhã” também nos adverte sobre o prazer da violência enquanto uma escolha política e racional.
Continua…