*Alexsandro Alves
PARTE 3: Apocalipse.
A experiência do totalitarismo deixa tanto seus executores quanto suas cobaias apáticas.
A própria Liga da Justiça se torna uma vítima e quando o diálogo surge já é tarde demais, a trombeta tocou e raios e trovões ensurdecem ante a batalha descomunal de todos os super-heróis. É o Armagedom bíblico. Uma bomba atômica explode por fim no campo de batalha, aniquilando quase praticamente todos os superseres. A luta central foi entre Super-Homem e Shazam. E por mais que aquele tente agora um diálogo, o detentor dos poderes da Pedra da Eternidade é implacável.
Olhando o campo de batalha sentimos compaixão diante do fracasso do Super-Homem. Depois da bomba encaramos a estupides de ações autoritárias que levaram a uma desordem ainda maior.
O fim é uma verdadeira lamentação das almas. Seco. A bomba explode e tudo termina. As últimas quatro páginas que mostram um diálogo entre a Trindade foram colocadas depois, quando de sua primeira republicação em edição encadernada. O fim original é o campo devastado por uma explosão atômica. Sem qualquer espaço para a voz humana.
Terra devastada. Seria melhor assim? O final da edição encadernada não coloca mais explicações no ocorrido. É desnecessário. O fim mesmo é o resultado da prepotência humana objetivado na bomba atômica final. Os gritos de ódio e as ações truculentas explodiram por tempo demais e quando cessam, a razão é o pó que se levanta entre defuntos.
E é consideravelmente sintomático que para conter a violência Super-Homem se torne um quase um déspota. A figura dele com certeza é gigantesca. É o Everest dos super-heróis. Porém o entusiasmo com figuras assim, na história humana, quase sempre se torna prejudicial. Embora a Bíblia seja citada inúmeras vezes, Kal-El não é Cristo. Ele erra mais do que acerta. Na verdade, temos um salvador mais humano do que divino. Um super-homem que abandona os homens; depois tenta retomar o diálogo com a espécie que jurou defender ao mesmo tempo em que usa de ideias ditatoriais contra seus iguais. Ele voa e parece que perdeu o contato com a terra.
Ou nós perdemos. Perdemos a empatia com personagens muito perfeitos? E se perdemos, foi para a melhor? O autoritarismo, agora encarnado no Super-Homem, está dialogando com quem? Seriam quem nossos heróis hoje? Precisamos deles hoje?
Em “Reino do Amanhã”, heróis que dialogam perderam a comunicação com o povo. Então, dessa falta, nasceram substitutos com punhos fechados, expressões gritantes e atos brutais.
“Reino do Amanhã” parte da premissa da vigilância do mal. Mas não uma vigilância opressiva, mas uma vigilância pautada em princípios éticos. Pois é justamente o vigiar e punir, aquele que Foucault critica, que leva ao totalitarismo como escape e que acaba por tornar-se uma armadilha. A vigilância não como ato policial. Mas como ato humano. Não é uma vigilância sobre o outro que culmina em um ato coercitivo, mas uma vigilância em nós mesmos. No que escolhemos, no que abraçamos.
O diálogo nesse contexto se eleva a sua verdadeira importância: como categoria central dentro da conduta humana. Por mais que os personagens dessa obra ajam quase irracionalmente, sentimos um apelo pela razão, sobretudo em Super-Homem, mas que se embriaga por escolhas pouco meditadas.
EPÍLOGO.
Mark Waid foi primoroso nesse texto. “Reino do Amanhã” é tão magistral que desde o primeiro número os entusiastas e a crítica especializada clamaram juntos afirmando a supremacia da obra. É bom repetir de novo: é a maior hq da década de 90. E se torna ainda mais colossal se a comparamos com muita coisa daquela década. Mas as irmãs dessa obra não estão, infelizmente nos anos 90, ao menos a maioria das irmãs. Reino do Amanhã tem pareia mesmo é com as grandes obras da década de 80. Permanecerá como um clássico. E sempre que precisarmos descobrir ou redescobrir o significado de heroísmo, abriremos suas páginas para nos depararmos com personagens em busca de humanização a um nível sem igual.
É também uma obra cinza, melancólica. Sua tristeza se inicia já com os delírios de Dodds no leito do hospital; vai acinzentando com a aparição do Espectro e alcança seu nível mais elevado com a amarga situação social daquela Terra. Que é analogia para a nossa vida no presente: as grandes obras sempre falam de nós como se nos vissem através de um espelho distante.
Waid não economizou nas referências ao Universo DC, enumerá-las aqui, seria impossível, por mais tentação que se apodere deste escriba. É coisa para outros textos sobre a obra. Além disso, ainda temos a questão religiosa. O texto de Waid pode muito bem ser lido como interpretação do Apocalipse. E, por coincidência ou não, o panorama imagético bíblico do Apocalipse se casa com perfeição com os personagens da Casa das Lendas!
Outro ponto grandioso são os diálogos. Desde a cena entre Dodds e o pastor até a cena da Trindade na lanchonete, temos falas tão conscientemente dramáticas, que se fossem adaptadas para o cinema poderiam fazer parte de muitas cenas sem qualquer modificação.
E temos Alex Ross. Aclamado por unanimidade entre os fãs do gênero, Ross se encontra melhor aqui do em “Marvels”, que desenhou para a editora dos Vingadores. Podem discordar quem quiser, mas cenas como a chegada do Espectro, a primeira aparição de Clark na fazenda, a Mulher-Maravilha, as cenas em Gotham ou o Lanterna Verde no espaço são espetaculares. A visão de Ross para o Flash é a definitiva, a melhor representação do personagem nos quadrinhos.
E não sentimos aqui o vazio inoperante que toma conta em algumas páginas de “Marvels”. Há uma força pictórica que não transforma as cenas em quadros parados, como na obra para a editora do Homem-Aranha. Algumas vezes isso até acontece, mas na maioria das vezes temos uma fluidez imagética melhor conseguida aqui com Super-Homem e companhia. Assim como Waid, Ross não poupou referências, e numerá-las aqui não é o propósito desse texto. Ele tem grande conhecimento dos personagens da DC, e isso faz a diferença em qualquer criador que se preze. Conhecer o terreno que pisa por experiência própria.
Eu tenho a sensação de que o traço e o estilo de Ross se adequam mais aos personagens da DC do que aos de qualquer outra editora ou mesmo qualquer outro gênero dos quadrinhos. Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha, Shazam nasceram para serem pintados por Ross. Com Ross, aquela questão do “ícone” se mostra mais coerente com os personagens da Liga da Justiça. E digo isso não para diminuir outros personagens, pois também têm sua relevância histórica imperturbável, não precisam ficar verdes de raiva nem subindo pelas paredes. Não é vingança, é justiça mesmo.
Uma nota para Reino do Amanhã. O 10 é questão sem margem para dúvidas. É uma obra que alcança os pontos mais elevados da criação na arte sequencial. É em obras assim que nós, amantes dos quadrinhos, afirmamos categoricamente que quadrinho é arte. E uma arte própria.