*Alexsandro Alves
PARTE 1: Uma Era Anabolizada.
Dizer que “Reino do Amanhã” é a maior história em quadrinhos da década de 90 apenas diz o facilmente constatável – e não apenas porque a década de 90 é a década da imagem e do quadrinho ruim (ou “Image”), mas também porque essa obra dialoga com esse período, e o condena.
Em 1985, a DC Comics publicou duas obras admiráveis: “Watchmen” e “O Cavaleiro das Trevas” (para não mencionar “Crise nas Infinitas Terras”, mas para esse artigo essa saga magistral não tem lugar), essas obras escritas por Alan Moore e Frank Miller respectivamente reinventaram o quadrinho e levaram a técnica à uma explosão e ao mesmo tempo esticaram as possibilidades da narrativa sequencial. A estrutura da narrativa, sobretudo em “Watchmen”, muitas vezes dialoga com narrativas mais tradicionais para simplesmente delas se distanciar e mostrar um novo e mais maravilhoso caminho. “Cavaleiro das Trevas” dialoga com o cinema, por mais que os puritanos e afoitos amantes da pureza técnica sequencial possam discordar. Mas essas obras também teriam algo mais em comum.
Seus personagens são seres que vivem em um mundo caótico onde a perda de credibilidade das instituições e dos políticos de forma geral desencadeia uma série de atos violentos e seus heróis (“heróis”, melhor dizendo) são criaturas, homens que vagam feito loucos moribundos segurando placas com citações religiosas (Rorschach, em “Watchmen”);
são mulheres que carregam na alma a dor e o amor de amar estupradores (a primeira Espetral e seu relacionamento violento com O Comediante, também em “Watchmen”);
são psicopatas fascistas reacionários em um mundo esquizofrênico (Bruce Wayne) ou personagens que se conformam com o caos e servem “a nação” (Clark Kent) em “O Cavaleiro das Trevas”. Em ambas as obras, sangue e violência tingem a página das hqs de um vermelho cru e real, sem fantasias de finais felizes. Os finais de ambas as obras, por mais que indiquem um final “bom”, são na verdade bastante cinzentos, sobretudo em “Watchmen”.
Personagens com esse potencial para a loucura e violência e com um discurso moral com dislexia para direitos humanos foi o que mais saltou aos olhos de uma nova geração de criadores na década seguinte. A década de 90! O que dizer dessa década em termos de quadrinhos? Basicamente pensamos na testosterona de personagens mal desenhados acometidos de algo próximo a uma elefantíase artística (Rob Liefeld e o primeiro Jim Lee) ao mesmo tempo em que o discurso sede lugar a uma gritaria palavreada em textos sem sentido e fora de qualquer alcance neural. Esses personagens (os mais emblemáticos de todos são Venon e Carnificina, da Marvel), dominaram uma geração inteira de novos leitores de quadrinhos que pensavam que apenas ser “bombado” e segurar um revólver maior do que si mesmo ou ter sempre o biquíni rasgando as cavidades anais, aliados a um discurso agressivo e irracional, fossem arte.
Desse período apenas Spawn ainda se mantem, pois foi o único que, embora apresentasse as mesmas disfunções de seus contemporâneos, conseguia unir a isso uma narrativa ótima em histórias que iam além da “Image” pega em teste de anabolizantes.
As demais criações desse período, são figuras descartáveis de super-heróis sem princípios éticos ou morais que jogavam para o alto qualquer intento de verdade e justiça. Sob certa ótica até que dialogavam com a política estadunidense da época.
E dialogam ainda.
É dentro desse contexto que “Reino do Amanhã” surge.
Continua…