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Eva Wilma se despede

Navegos publica texto inédito do segundo volume de O spleen de Natal, obra já considerada clássica pelos leitores, sendo há muitos anos o título mais procurado nos sebos de Natal. Recentemente a segunda edição do primeiro volume foi anunciado para venda como parte do espólio da grande atriz Bibi Ferreira, leitora desse escritor nascido no Ceará-Mirim e criado no Assu.

*Franklin Jorge – Um pobre homem do Ceará-Mirim

De saída para o aeroporto, enquanto aguarda o táxi na portaria do hotel, em Ponta Negra, Eva Wilma telefona-me para despedir-se. Durante a conversa – que deve ser rápida pela circunstância –, pediu-me uma cópia da peça “Que Mulesta de Vida”, citada em “O Spleen de Natal” (v. 1-3, Amarela Edições, 1996), na entrevista com a atriz e dramaturga Águeda Ferreira, que ela leu e sentiu-se tocada por sua história de vida e a perseverança com que ama o teatro.  Fiquei curiosa para ler sua peça. Sua entrevista no “Spleen…” é dramática. Uma pungente história de vida. Um exemplo de coragem e de autoconfiança, de vocação. Fiquei curiosa para ler sua peça.

Zara sequestrou e apropriou-se do livro, do meu “Spleen…”. Tenho-o disputado com ele, sem sucesso, desde então. Zara se entusiasma com algumas das personagens e lê trechos para mim, em voz alta, interpretando e às vezes rindo-se… Seu livro tem cada personagem. Mostra a imensa, a variadíssima humanidade de Natal. Estamos os dois encantados com a maneira como transformou Natal em personagem desse livro…

Fazia o meu café da manhã quando tocou o telefone às 5h30 e fui atender, tentando adivinhar quem me chamava tão cedo da manhã. Fiquei surpreso. Pensei que só podia ser um amigo que não ignorasse que sou madrugador e acordo cedo. Era Eva Wilma, que há muitos anos lera a meu respeito texto do jornalista Woden Madruga que me chamava de “um ser matinal” e isto lhe atraíra a atenção, segundo lembrou..

Eva confessa que ficou comovida com a história de Águeda, moça pobre e obstinada como gente de teatro, diz-me, reiterando seu desejo de ler a peça. Eu me lembro dessa moça e gostaria de ler sua peça. Prometa-me que obterá uma cópia e a enviará para o endereço que lhe dei. Agora, só não gostei das referências que ela faz à Nair Belo, coitada, colocada de maneira tão imprópria e cruel em seu depoimento.

Contra-argumento com um truísmo. Todo ser humano é múltiplo e, como tal, possui qualidades e defeitos. Mas – contesta a atriz -, é terrível… Talvez Águeda tenha se equivocado… Nair é uma ótima colega de muitos anos… Acho que há exagero em tudo isso.

Eva deseja adquirir os dois últimos volumes de “O Spleen de Natal”, ainda inéditos. Um livro que, segundo afirma gentilmente, captura a alma mesma da cidade; dessa cidade que ela conhece já de muitos anos, uma cidade onde tem amigos de velha intimidade. Zara não parou de ler o livro um só minuto, atraído pela humanidade de seus personagens…

Por fim, alguém vem avisá-la de que o táxi está à espera e a atriz se despede, transmitindo-me as recomendações de Carlos Zara. É pena que não tenham podido encontrar-se…

[2]

Conhecemo-nos – Eva Wilma e eu – através de um telefonema de Deijair Henriques. Disse-lhe que, sabedor da sua amizade por Natal, quis ouvi-la para o romance da cidade que não paro de escrever desde a minha adolescência inquieta e fatigada. Marcada a entrevista, sou recebido nos jardins do teatro, após o ensaio da peça na qual contracena com Eliana Giardini.

Então essa entrevista vai para o seu livro sobre Natal? Tenho uma ligação afetiva muito grande com esta cidade e creio que esta é a melhor ligação que pode haver, declara sem nenhuma afetação. Quando eu era muito jovem, aos catorze anos, estive aqui pela primeira vez…

Em 1949, minha professora de balé, Maria Olenewa, incluiu-me numa turnê pelo Brasil. Chegamos aqui de navio. A primeira impressão que ficou desse primeiro encontro foi despertada por este belo teatro, que nunca mais esqueci. Voltei a me apresentar nele outra vez em 1971, numa comédia americana, Putz…

Nesse reencontro com Natal, vinte anos depois, Eva Wilma conhece e se torna amiga da professora de música Deijair Henriques Borges, que lhe foi apresentada por Luís Felipe de Andrade, seu colega do curso de piano. Continuamos conversando por telefone como boas amigas, mas só retornei a Natal em 1977 com a peça “Esperando Godot”, numa turnê muito gratificante, por que me fez conhecer melhor a cidade. Era secretário de educação o professor João Faustino, que nos recebeu muito bem. Quando fui fazer na Globo a novela “Selva de Pedra”, de Aguinaldo Silva, consegui fazer com que a cidade do Natal fosse incluída na trama das novela…

Natal tem uma magia especial, que não resulta somente das suas belezas naturais, mas das suas raízes, da índole cordial do seu povo. Enfim, de alguma coisa misteriosa que nos toca a todos profundamente. Eu amo Natal, não apenas por causa dos seus mistérios, da sua luz estonteante, da sua paisagem e das suas personagens cheias de humanidade.

Em 1973, na época da novela “Mulheres de Areia”, eu estive aqui rapidamente para a Festa das Personalidades, mas não guardo nenhuma lembrança especial dessa viagem. Foi “boa noite e até logo”… Quando fiquei na casa de Deijair, em 1985, foi diferente. Tive passeios muito gostosos como Moema Cunha Lima e fui muito acarinhada pelas pessoas. Eu estava muito estressada, após perder minha mãe, Luísa, e meu pai, Otto Riefle Júnior. Aqui me senti renascer, após tantas perdas emocionais e afetivas. Voltei outra vez em 1990 para apresentar o concerto oficial da orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte…

Nossa! Pulei um pedaço enorme dessa história, interrompe-se, subitamente. Em 1987 estive aqui com a peça “Quando o coração floresce”, encerrando uma temporada de três anos por todo o Brasil. No ano seguinte, participei do Festival de Cinema, quando recebi o Troféu Estrela do Mar por minha atuação no filme “Feliz ano velho”, onde fiz uma ponta… Vou mandar para você o livro de Marcelo Rubens Paiva, que inspirou o filme…

Eva Wilma ganhou muitos prêmios com seus dezoito filmes, entre os quais ela recorda “São Paulo S.A.”, de Luís Carlos Person e “Cidade ameaçada”, de Roberto Farias. Tem dois Sacis, por “Chico Viola não morreu”.

Fui direto da vida para o palco. Desde os momentos mais afetivos de minha vida, recordam meu pai e minha mãe se revezando no palco… Papai morreu aos setenta e seis anos. Era tenor. Cantava na igreja. Mamãe morreu aos sessenta e nove. Argentina e filha de judeus russos. Tinha vocação para concertista. Eles me estimularam, principalmente a minha mãe…

Sua educação inclui escola, aulas de piano, violão, canto e línguas – inglês, francês, alemão… – Aos nove anos faz um solo no teatro – a dança militar de Schubert.

Meus pais chegaram ao Brasil em1929. Aqui, a princípio, foram perseguidos pelo Estado Novo, emblema de uma ditadura populista de um civil. Ficamos em dificuldades materiais. Foi quando, em 1953, comecei minha carreira. Nasci em 1933, no dia quinze de dezembro, em São Paulo. Sempre declarei com exatidão a minha idade. Acho agradável dizer que tenho todos estes anos de vivência. Vivi. Vivi muito, Vivo. Vivo. Tenho dois filhos e três netos. E um marido maravilhoso de quem muito me orgulho.

Meu lado família é muito importante para mim, pois me fornece os elementos de que me nutro na vida profissional. Me orgulho, sem nenhum pudor, de ter sobrevivido, nesses quarenta e três anos, do meu trabalho…

A composição de uma personagem a empolga. Eva Wilma vibra com a arte dramática. Ah, a Marieta Berdinazzi resultou de um convite maravilhoso. Tivemos mais de dois anjos para preparar a personagem. Tive uma orientadora de língua italiana…

Cada ator tem um método. Quando eu trabalhava já fazia a análise do texto e do personagem. Nesse exercício, entendemos que nenhuma fala pode ser gratuita. Nesse espetáculo que você vai ver – Querida Mamãe – eu tenho um caco, esse repente que ocorre ao ator. Em televisão, onde é possível remendar, esse preparo não é comum. É dispendioso despender com um elenco de duzentas pessoas durante dois meses para preparar um trabalho.

Eva sempre encara sua carreira é como uma continuidade. Esse meu papel na peça é um somatório. Todos os personagens que já fiz emprestam algo para o meu papel neste momento… Eliana e eu nos damos muito bem. Jogamos maravilhosamente em cena, no palco. Somos como uma dupla de vôlei de praia. Ganhei cinco prêmios, mas Eliana levantou a bola para mim…

O processo de criação de uma personagem é parecido com uma gestação, afirma. Em cada trabalho busco o novo dentro de mim, para tentar doar isso com garra! O que me move é o amor ao público. Tenho consciência da minha responsabilidade.

Nesse aspecto, a televisão é altamente gratificante. Eis uma atriz regida por uma ética.  Na televisão alcançamos todas as camadas sociais, sobretudo aquelas que não tem acesso a nada. A vida de uma atriz é cheia de paradoxos. Eva, que se gratifica com o reconhecimento caloroso do público, em “O meu pé de laranja lima”, batia numa criança! Ontem, no restaurante, Eva recebeu torpedos de um grupo de fãs.

Você me dá a oportunidade de deixar em seu romance da cidade a minha eterna gratidão ao povo de Natal. Esta é a oitava vez que venho a Natal. Fiz as contas, esta é a oitava vez que venho a esta bela cidade do Natal. E você me faz recordar, nesse encontro, que oito é o número do infinito.

A atriz – sutilíssima como essas velhas atrizes inglesas, espirituosas, de uma elegância distinta e algo casual -, despojada e lúdica. De uma inteligência lúcida. Comunicativa.

No teatro, ficamos na memória de cada um, na emoção das pessoas, na reflexão que o teatro proporciona. Esse é o teatro que me gratifica, o teatro que entretém e faz pensar com inteligência. É quando posso me mostrar sempre ao público, de corpo e alma inteiros. Na televisão e no cinema, fazemos tudo aos pedacinhos, cena por cena que serão editadas. O teatro, ao contrário, é instantâneo, ao vivo.

Eu leio tudo, diz-me Eva Wilma. Ontem, comecei a ler o seu livro. Nunca fico sem ler alguma coisa. O poeta que me fascina é Rilke. Dos brasileiros, gosto de Drummond. Leio muito os contemporâneos. As peças de Plínio Marcos, por mais viscerais, em termos extremos, são poéticas.

Zara pegou o “Spleen…” Não o soltou mais… Ele gostou do que eu senti, lendo o seu livro. Ele gostaria de conversar com você sobre o “Spleen…” Seria um ótimo encontro. O “Spleen…” nos surpreendeu. Ler esse livro é conhecer a alma da cidade… Estamos bastante encantados com esses natalenses que você tirou do anonimato e deu-lhes a longa vida da arte. Zara lamenta não te-lo conhecido… Não ter conhecido o autor do “Spleen…”

Dessa vez, em Natal, senti o meu amor pela cidade renovado. Vi a cidade exercendo a democracia através do voto, embora ainda de uma maneira que não gostaríamos que fosse, com o voto de cabresto. Sou contra o voto obrigatório. O voto tem que ser escolha de cada um.

Eva viu uma Natal que se abre para o turismo. Uma cidade feita para o prazer dos que vem de fora. Vi uma Natal que me deu a sensação de que isto está sendo feito com o cuidado necessário para preservar valores natalenses, como esse templo do teatro.

Dominada pela emoção, sente-se privilegiada de apresentar-se, daqui a pouco, no Teatro Alberto Maranhão em temporada bem sucedida. Arrisca-se a fazer uma avaliação da cidade, a Natal que vê e a de se que lembra, desde que esteve aqui pela última vez. Aqui tenho a impressão que houve um boom de crescimento que inclui o da pobreza…

Eva defende a repartição do Brasil em confederações autônomas. Somente a emancipação do Nordeste desmascararia a indústria da seca. O natalense é um nordestino muito especial e evoluído. Gentil, muito gentil, mais gentil ainda do que todos os demais brasileiros. Natal sofre sem dúvida a influência da segunda guerra. Mas tem um povo gentil, hospitaleiro, de muita personalidade, todavia. Aqui, trabalho e convivo com amigos…