*Franklin Jorge
Uma noite dessas – quando recolhia alguns títulos do que restou de minha biblioteca para doar à associação que mantém a Casa de Cultura de Campestre – deparei-me com um dos livros prediletos de minha avó materna, a antologia organizada por Júlio Nogueira, Poesia Nossa, que ela sabia quase inteiramente de cor.
Publicado em 1954, dois anos após meu nascimento no Ceará-Mirim, reúne o livro já bastante gasto pelo uso o melhor e mais singular da poesia brasileira da época e de todas as épocas. Folheando-o, ao sabor da circunstância, revi-me aos sete ou oito anos, caminhando de mãos dadas com a minha avó em direção ao pomar que ela plantara nas terras baixas do Estevão, no Vale do Assu, consideradas por meu Padrinho tão ricas quanto as do Vale do Nilo, por causa das cheias periódicas que nos levavam a nos refugiar nas terras altas dos tabuleiros do Panom, uma região que era a porta de entrada das velhas e misteriosas matas da Catingueira, atualmente desaparecidas, onde viviam em bandos os papagaios, os periquitos, as jandaias, as corujas, as perdizes, as nambus e a solitária juriti flamejante.
Nesse trajeto, cortado por um córrego que transbordava nos grandes invernos, detinhamo-nos, aqui e ali, para apreciar a natureza ainda aureolada pelo orvalho da noite ou para ouvirmos o trinar dos pássaros que pulavam de galho em galho à nossa passagem, entregues ao gracioso acolhimento da manhã auspiciosa. E, como numa página de Shakespeare, se procurássemos a beleza ali a acharíamos por todo o canto, no flamejante mulungu, nos ninhos dos beija-flores, nos carnaubais farfalhantes ou no vôo raso das gordas nambus que ainda dormiam em suas locas ao longo do caminho que esbarrava à beira do rio imemorial a refletir o céu.
Minha avó gostava de cantar e de repetir seus poetas prediletos, cujos versos engalanavam-se em sua boca que para mim evocava uma fruta cheia de frescor. Tudo isso me veio à lembrança ao folhear o querido volume. Uma das melhores e mais completas antologias que tenho lido, publicada pela Biblioteca do Exército que tanto serviço prestou ao país ao tempo em que ainda havia alta cultura.
Alguns desses versos, especialmente, pareciam-me impregnar-se de sua bela voz de contralto, como quando, ao apontar a magnífica oiticica que bem teria deleitado o poeta José Albano (1882 -1923), dizia-os para o neto:
Olha estas velhas árvores – mais belas
do que as árvores moças, mais amigas,
tanto mais belas quanto mais antigas,
vencedoras da idade e das procelas…
Versos que ela interrompia, às vezes, para informar-me sobre o poeta ou para explicar-me um vocábulo raro com que enriquecia, sem cansar-me, o vocabulário, pois convencionara-se que eu seria, algum dia, um escritor; alguém, enfim, dotado do dom de dar vida aos mortos.
Invadidos pelos alegres ruídos da manhã ensolarada, sentíamos como que a escorrer em nossas veias a própria seiva da vida. Menino, eu sentia do fundo sua alma, embora não o soubesse ainda traduzir em palavras. Quanta emoção a ouvi-la decantar a língua portuguesa nos versos de Bilac (1865-1918)!
Última flor do Lácio, inculta e bela,
és, a um tempo, esplendor e sepultura;
ouro nativo, que na ganga impura
a bruta mina entre os cascalhos vela…
Não era a minha avó uma declamadora empostada, mas o que os franceses costumam chamar de diseuse. Como me agradava ouvi-la dizendo sem afetação os versos de Cecília Meireles (1901- 1964):
A chuva chove mansamente, como um sono
que tranqüilize, pacifique, resserene…
A chuva chove mansamente… Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine.
E que bela maneira de educar a um jovem inquieto e fatigado, ao apresentar-me, ainda adolescente ao adolescente de Ronald de Carvalho (1893-1935):
Faze do instante que passa
toda a tua aspiração,
que o mundo cheio de graça
caberá na tua mão!
Sê sóbrio: com um copo d´água,
um fruto e um pouco de pão,
nem sombra de leve mágoa
cortará teu coração.
Ama a rude terra virgem,
com todo o teu rude amor,
pois colherás na vertigem
de cada sonho uma flor…
E, de Raul Machado (1891-1954), poeta de quem ninguém mais se lembra, este aforisma ritmado:
Pensa em silêncio! É no silêncio apenas
Que esplende o pensamento criador!
De volta a casa, no fim da manhã, quando sobre a comprida mesa da cozinha depositava o cesto cheio de frutas e verduras trazido pelo negro Antonio Conceição, o impecável Bilac, que era certamente dos seus poetas mais queridos:
Vês como as aves tem, debaixo d´asa
o filho implume, no calor do ninho!
Deves amar, criança, a tua casa!
Ama o calor do maternal carinho!
Dentro da casa em que nasceste és tudo…
Como tudo é feliz no fim do dia,
Quando voltas das aulas e do estudo!
Volta, quando tu voltas, a alegria…
EM DESTAQUE. Bordado representando a casa construída em 1938 para as bodas de minha avó, no Estevão, entre os rios Panon e Assu, onde vivi dos dois meses aos 14 anos. Presente que recebi do jovem poeta assuense Pedro Henrique de Freitas nos meus 71 anos.