*Bernardo Soares
A maioria das pessoas se cansa de não saber dizer o que vê ou o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir uma espiral com palavras: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, enrolado em ordem para cima, com o qual aquela figura abstrata das docas ou de certas escadas se manifesta nos olhos. Mas, desde que lembremos que dizer é renovar, facilmente definiremos uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca poder fechar. A maioria das pessoas, eu sei, não ousaria definir assim, porque assumem que definir é dizer o que os outros querem que seja dito, não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que se desenvolve, elevando-se sem nunca se completar. Mas não, a definição ainda é abstrata. Procurarei o concreto, e tudo se verá: uma espiral é uma cobra sem cobra enrolada verticalmente em nada.
Toda a literatura consiste em um esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, mesmo quando o fazem sem saber, a vida é absolutamente irreal em sua realidade direta; os campos, as cidades, as ideias, são coisas absolutamente fictícias, filhas de nossa complexa sensação de nós mesmos. Todas as impressões são intransmissíveis, exceto se as convertermos em literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como se sentem e não como alguém que se sente segundo outra pessoa deveria se sentir. Uma criança, que uma vez ouvi dizer, querendo dizer que estava à beira das lágrimas, não “estou com vontade de chorar”, que é o que diria um adulto, isto é, um tolo, mas isto: “estou com vontade de chorar”. chorando.”. E esta frase, absolutamente literária, a ponto de ser afetada em um poeta famoso, se ele pudesse dizê-la, alude decididamente à presença quente de lágrimas quebrando nas pálpebras conscientes de amargura líquida. “Eu sinto vontade de chorar!” Aquele garotinho definiu bem sua espiral.
Dizer! Saiba dizer! Saber existir pela voz escrita e pela imagem intelectual! Tudo isso é que vale a vida: o resto são homens e mulheres, amores supostos e falsas vaidades, subterfúgios da digestão e do esquecimento, gente que se mexe, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o grande penedo abstrato do céu azul sem senso.
Do “Livro do Desassossego.”, de Bernardo Soares.