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Fabilisca, o confabulatori nocturni

Fundador de Navegos relata as peripécias de um tipo histriônico de sua juventude, conhecido pelo nome de Fabilisca**.

 

Fabilisca chegava com quando o dia declinava e aparecia a Estrela d´Alva ou o Setestrelo que víamos através de um fino tecido de algodão, usado por minha Avó para filtrar o soro da coalhada, preparando-se para fazer o requeijão. Já vinha ceado, mas não dispensava uma boa talhada de bolo, biscoito, pão, manteiga e queijo; às vezes uma sopinha.

Seus contos mantinham-nos em suspenso, sem sequer bater as pestanas, de olhos grelados em sua boca. Nascera de corpo são. Contudo, um dia, sentiu uma dor tremenda e amofinou-se no fundo de uma rede e acabou entrevado. Ganhou uma perna mais curta do que a outra e se adestrou em corrida rasteira e capengante que mereceu felicitações por sua fé e perseverança; uma corcunda; dedos enrijecidos e um esqueleto raquítico e sem prumo. Tinha um grande apreço por seus bigodes, que cofiava distraidamente, por prazer ou hábito, quando conversava e contava as suas histórias cheias de aventuras, infortúnios e a eterna luta entre o bem e o mal, até a vitória final. Às vezes, culminando com um casamento real ou um copioso banquete e, ao descrever as iguarias que deliciara o seu paladar, descrevia algumas das comidas que minha Avó reservava às comemorações familiares, como a famosa Torta da inveja, as Frutinhas de abacaxi, o bolo de frutas secas,  os tabletes de maracujá, os pretzels. Era tanta comida, e para não sobrar tantos acepipes, todos os presentes fizeram pratos e bandejas para levar para casa, também fiz a minha bandeja, para trazer as provas de tanta comida boa para vocês terem ideia do tamanho dessa comilança capaz de fartar um abade.

Conservava as unhas absurdamente pontiagudas; algumas se curvavam em forma de garras cortantes. Tinha os olhos estriados de vermelho, como Palula, que mataria sem apelação, acaso a minha mãe o quisesse. Abastecia-nos com água salubre e fresca de cacimba cavada à margem do rio. Morava numa casa velha e alta, de taipa, ao sopé da entrada aos tabuleiros inóspitos, de vegetação surrealista. Terras devolutas e areia grossa por onde rodavam os carros de bois.

Minha Avó via nele o Quasímodo do romance que fizera grande sucesso entre as moças de seu tempo; um ser disforme, histriônico, que atraía as crianças agraciadas com suas novelas e peripécias. Após o jantar na comprida mesa de cedro, nos reuníamos na calçada, à luz das estrelas. Dotado de grande talento imitativo, falava com dezenas de vozes, sem transição, sem rasuras nem remendos.

Dessas histórias, muitas foram ouvidas de seus avós, os Galdinos, agricultores e artesãos, leais e honestos. Meus avós eram padrinhos de batismo de todos os filhos do casal. A mãe amalucada e silenciosa, reclusa, não saía da camarinha. Falava, quando necessário, sem abrir a porta e sem mostrar-se. De vocabulário reduzido, respondia a qualquer pergunta com três ou quatro frases feitas que se aplicavam a qualquer assunto, o que fazia com que minha Avó exaltasse sua inteligência; se não conversava como todo mundo, seria por doença ou preguiça, não porque carecesse de cognição e entendimento das coisas que nos acossam.

Dentre os seus talentos e habilidades, Flavio, Flavinho, Fabilisca – como o chamávamos -, fabricava roladeiras, gaiolas e arapucas de talo de carnaubeiras. Consertava qualquer coisa. Às vezes caçava tatus e preás. Gostava de nambus e arribaçãs que se matavam à pauladas, em seus ninhos, entre moitas de xique-xique e unhas de gato.

Dava-nos notícias de coisas assombrosas do pau-de-cera que vertia um leite espesso, cegante; era uma espécie que dava à margem dos caminhos e à noite se transforma em visagem. Muito cabra capaz de carregar a faca entre os dentes, amolengava de sua macheza ao deparar-se, a altas horas com um pé de flor de cera, tese, a mão estendida, curvando a cabeça sucessivas vezes, em saudação arrepiante que o fez tremer e peidar de medo, confissão que ele fazia em confiança, para não parecer aos outros, medroso. Assustado, como outros antes dele, tremeram com viagens e assombrações. Fabilisca podia-nos contar uma enfieira de relatos que davam força ao seu depoimento. Por sorte, trouxera seu infalível quicezinho, muito pontiagudo, amolado e cortante que naquele aperreio lhe veio à mente e, de pronto, armado por essa lembrança e mais rápido que um gatuno, saquei de minha proteção, abaixo de Deus, esse quicezinho para o que der e vier.

Sabia dezenas de histórias de Trancoso que desconhecia quem fora, em seu tempo, em Portugal.

Não ficava à sombra de oiticicas, grandes arvores de aluvião em torno das quais se reuniam seres sobrenaturais, almas penadas e entidades diabólicas em conluio com o mal que persevera.

 

(…)

 

**Fragmento do livro A idade dos nomes (inédito).