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Felicidade

Colaboradora de Navegos, ocupante da Cadeira Maria Eugênia Maceira Montenegro da Academia Assuense de Letras evoca a memória de carnavais do passado.

*Maria do Perpetuo Socorro Wanderley de Castro

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Foi num instante que surgiu uma ideia que fulminou meu pensamento e o aprendizado gramatical do português: pensei assim que felicidade é um advérbio de tempo e lugar. Não um substantivo, como feliz não é um adjetivo que qualifica uma pessoa.

Não aguardarei as oposições, algumas veementes talvez, a essa reflexão iconoclasta do conhecimento do português. Quero explicar e peço que me ouçam antes de tudo.

Estava eu a ouvir a letra de Antônio Maria, na marcha rancho – “ai ai. Saudade, saudade tão grande “  em que o poeta  retrata o carnaval do Recife  que está tão longe. Os maracatus retardados que chegam cansados, com seus estandartes no ar.

Isso fez ativar o campo da memória. Retomo lembranças. Assuenses. O Assú está tão longe que, para não perdê-lo, trago dentro de mim. Suas cores, seus sons, seus rumores. E seus festejos. Ali, bom Brasil, havia carnaval, uma rima pobre para o carnaubal cujas palmas são os estandartes no ar sertanejo.

Certo momento, um grupo, contrariando a mesmice, lançou um grito de guerra frente ao conformismo.  Chegaram As Rebeldes. Pretendiam interferir no conceito de carnaval, feito de colombinas, pierrôs e arlequins. Embora, naquele ano, a música fosse mesmo a marcha rancho que dizia “Arlequim está chorando pelo amor da colombina”, as roupas usadas eram coloridos sarongues de havaiana, ou eram feitas de palha, as tradicionais esteiras de carnaúba, vestindo espantalhos de blusas vermelhas de bolas brancas.  Nada mais anticonvencional, longe de cetins, veludos e paetês.  Sem brilhos e lantejoulas; pé no chão, descalços. E uma ideia na cabeça. De Ivete Medeiros. A que todas se acostaram triunfantes na luminosidade do raio do novo.

Mais um Carnaval, agora ainda no tempo esquisito de poucos encontros, de divulgação das limitações de festas, falo do tempo passado em que havia o Baile de Máscara, ou e também frequentemente o Carnaval da saudade, com as músicas antigas, repetidas anos seguidos e   desenho aqui a paisagem dessa saudade. Eram os anos 1960 que findavam.  A terra era azul, não apenas porque Gagárin tinha dito, mas porque essa é a cor inefável dos alumbramentos. Naquele momento, havia o futuro e as possibilidades nele gestadas.

Sei que paira curiosidade sobre esse momento e sobre esse grupo que cintilou e seguiu em frente. Assim ocorreu porque, se ficassem, cristalizariam no cotidiano o que era uma quebra do dia-a-dia.  Um cometa que aparece e é colocado em movimento em direção ao sol. Assim, o grupo não traçava   plano de ação ou   programa a cumprir, e não era um movimento cultural ou ideológico, mas o eco do grito de liberdade para a vida, para os costumes. Era o momento em que era intenso o desejo de romper os padrões, abrir novas perspectivas, olhar para o futuro. Destruir as barreiras.  A partir daquele instante tudo poderia ser, ocorrer. As possibilidades existiam naquele cenário pois a juventude sonha e confia em sua força e capacidade de desafiar os limites.

Faço o registro, mas me escuso de informar, tantas décadas depois, os rumos seguidos. Afinal de contas, os cometas têm órbitas excêntricas e períodos orbitais que podem atingir vários milhões de anos.

Contento-me em voltar ao ponto de partida deste texto e lembrar Moraes Moreira, de tantos   carnavais que, em Pão e Poesia, entoa – Felicidade é uma cidade pequenina e a faculdade de sonhar, ou de relembrar.