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Fernando Luiz, animador cultural que não desanima

Fernando Luiz é, como animador cultural, um marco e um farol. trabalhando incansavelmente, incentivando te procurando novos talentos, seu esforço dá vida a inúmeros sonhos de pessoas que jazeriam na obscuridade sem a clarividência de seu apoio desprovido de egoismo.

*Franklin Jorge

Há meses tive em mãos o livro de Fernando Luiz, A arte de pés descalços, titulo singelo e relato prosaico, sem metafísica ou credos estéticos autorais. Folheei-o algumas vezes, sempre protelando a leitura que me parecia ser de descobertas, pois desde o início o escritor foi pautando sua confissão pela vivencia que lhe mandava contar o fato como acontecera. Descalça de glamour, de consagração, de conquistas e popularidade.  Aqui e ali, ia tomando conhecimento de uma informação nova – ditada pela experiência e pelo idealismo de um artista que, por sua insistência em romper círculos elásticos, tornar-se-ia, de alguma forma, uma figura folclórica em luta por sua utopia. Alguém que se fazia reconhecer em toda a parte, como Fernando Luiz. Músico. Cantor. Animador cultural. Um incansável caçador de talentos. Nosso grande caçador de talentos, trabalhando para muitos, fazendo-os aparecer bem na fita.

Havia muito tentara entrevista-lo para o Spleen, porém não obtive resposta. E agora, nas vésperas de uma viagem ao Rio, em um encontro fortuito, ele me presenteia com o seu livro que é o documentário de um heroísmo, segundo vou averiguando, de lápis na mão, anotando tudo o que me pareceu familiar ou estranho a experiência. E ao mesmo tempo, ao lê-lo, primeiro dessa maneira fatiada e algo confusa, ao ver-me diante desse corolário de quanto todos aqueles pensaram, algum dia, fomentar um sonho, dar largueza a fantasia de construir algo útil. No caso dele, a caça e a revelação de talentos que do contrário teriam um caminho mais árduo. Que lutariam sem esse esteio benfazejo.

Logo, às primeiras páginas, deparei-me com o homem que pensa no bem comum. Que não olha para o próprio umbigo nem exerce nenhum cargo público, mas dá o melhor de si, na auto-realização de muitos. Fernando Luiz é alguém que sabe ouvir e compreender, porem tem uma meta a perseguir e a alcançar, para justificar a sua existência. Nada pode conter a sua ânsia de seguir em frente, crendo que grandes talentos anônimos costumam viver em bolsões de pobreza. E assim pensando construiu pontes inter-bairros, inter-comunidades. Pontes que afirmam sua fé no homem.

Fernando Luiz percebe as distorções e o complexo de inferioridade que orienta as ações culturais entre nós, e não se apresenta como especialista; e aponta-nos quanto cultivamos o exótico, o endógeno, o que está do outro lado, às vezes perto de nós – mas não em nós -, porque não vimos o que está ao nosso lado, é o que quer dizer-nos? Ele percebe discriminação em tudo. De clima de casa-grande e senzala, agora abençoado por editais que satisfazem urgências, mas não contribuem para a formação e o enriquecimento intelectual do público, que quer mais do que balançar o esqueleto. Sem o viés educativo, quero dizer, porém a um tempo muito didático, ao expor-nos a realidade que permeia a vida de instituições anômalas e estéreis. Verdadeiros zumbis da vida cultural, exposta nesse processo. Fogos fátuos, em seu melhor aspecto. Ninguém melhor do que aquele que sofreu na própria pele as agruras de fazer cultura entre nós poderia dar depoimento mais isento e preciso, ao falar como criador e paciente de um sistema que não se renova e se compraz em repetir-se, ano após ano, sem novidades e sem idéias novas. Obediente à rotina do ócio e do marasmo contagiosos.

Assim vemos Fernando Luiz, na comunidade do espírito, em contato com a realidade, isto é, com realidades novas, abrindo caminhos, descobrindo que aqui, na terra de Luis da Câmara Cascudo – berço e laboratório do folclore nacional -, é o lugar onde menos se valoriza o artista popular, ou melhor dizendo, a “prata da casa”; que aqui parece valer um pouco mais do que o que gato enterra. Não acreditamos no talento dos que conhecemos e está próximo.  Observa também, nas primeiras páginas do seu livro, o tamanho da falta de integração entre a capital e o interior do estado. As duas pontas não se comunicam. Não há vibração entre elas, mesmo quando se intenta o diálogo o processo se faz de maneira astuciosa para render diárias. Sem doutorados, sem títulos acadêmicos, apenas vivendo e pelejando contra o medíocre que há de ser a parte mais consistente de tudo, vendo com todas as inferências o que os sábios não percebem e continuam martelando, martelando em ferro frio, fracasso após fracasso, Fernando Luiz depõe, um após outro, os adversários de suas idéias. A força de sua utopia acaba se impondo. Uma eterna peleja da qual Fernando não esmorece. Está sempre a frente da inclusão e do fomento de uma arte sustentável. Está sempre conversando e convencendo. Levando gente para o seu lado.

Fernando Luiz levanta questões mais complexas. Mas persiste, em seus pensamentos, o incomodo de constar que estamos na rabeira de tudo. Que o Rio Grande do Norte tem uma posição insignificante no ranking da cultura regional. Regional, ele enfatiza, sem ironia. Ele descobre sozinho e nos faz descobrir com ele que não há política cultural sem ações sérias e regulares, sem planejamento e longo alcance, sem políticas culturais descentralizadas; e, muito menos, sem que se dê esse primeiro passo, de todos os mais difícil: o da valorização dos talentos locais. Porque, como aprendemos dos nossos pais, sempre tudo começa em casa. Se não vemos em volta, não enxergamos nada. E, por que não o que é nosso?, heim, meu caro Laurence Bittencourt leite.

Começou assim o seu Show das Comunidades, evento que mexe com a parte mais intima de uma cidade – seus bairros. Onde viceja a alma encantadora das ruas.  Ele pode assim dizer: “A riqueza cultural, abafada pela indiferença do poder público e pelo desprezo de certa parcela da chamada elite cultural, esperava apenas uma oportunidade para explodir, em toda a sua plenitude”. Potencia positiva da arte, o Show da Comunidade tornou-se um fato. Tornou-se o palco de muitos. Transcendeu o bairro. Afirmou-se como expressão cultural da cidade.

É impressionante como o artista dribla o descaso, a indiferença e a falta de projetos das instituições, que fazem tudo de afogadilho, sem pensar, repetindo a cada ano e a cada evento as mesmas dificuldades rotineiras, os mesmos rasgos de narcisismo e auto-suficiência. deletéria. Em tudo carecemos de espírito público, o que sobeja em Fernando Luiz, que quis altear-se da planície cercando-se de talentos emergentes que passaram a contar com o seu espaço. O Show das Comunidades. Algo especial para a vida de milhares de pessoas do bairro e adjacências.

Fernando Luiz foi onde o povo está. Ele conta como tudo começa, ou melhor, dá de bandeja a gestores que não perdem tempo, informando-se, pois trazem o gênio em si: “descentralização”, mapeamento cultural das comunidades, sobretudo os “desdobramentos socais da cultura”, conforme chama ao resíduo, ao que fica, ao que é verdadeiramente cultura.  Fernando Luiz coloca uma questão que não pode ser ignorada: a disparidade dos cachês pagos a artistas locais e convidados. Os locais são sempre tratados como dejetos, fatalidade a que não se pode fugir, pois constituem os ossos do oficio. Aquilo , no entanto, podemos protelar, postergar, protelar,  mas em algum momento será preciso, pelo menos, receber e ouvir um ou outro suspiro, para sermos democráticos, enquanto  pensamos noutras coisas muito diversas. Manda entrar o chato – e o chato entra pela enésima vez para ter o mesmo saldo. A mesma promessa fiada. Os locais são sempre tratados de qualquer jeito, sem consideração, submetidos a humilhações e angústia.

Ele vindica por uma cultura saída da vida das comunidades, uma cultura interagindo, porque, no mínimo, as idéias circulam. Um gestor esclarecido só precisa ouvir a voz da razão, e saber que não é o dono de nada. Apenas, se tiver sucesso, um gerente mais ou menos eficaz. Ora, há um grande filão nessa área que depende de gestão. A interação da Região metropolitana, que se fará, sem dúvida, por meio das ações culturais, que, assim, teriam seus custos reduzidos e sobretudo a união de todos promoveria a integração de que todos, de alguma forma, se ressentem. De repente, não apenas a capital do estado, vários municípios desfrutariam dos mesmos produtos e bens culturais, barateados nesse processo em termos de aquisição. A prática de um conceito de sustentabilidade que quase sempre não passa de uma expressão bonita e alvissareira. Que geralmente dá em nada. Mas, aqui, dá. Graças a união de todos.

A arte de pés descalços, como a viu o seu autor enseja muita reflexão sobre a realidade de fatos que se repetem e inoculam, no público, o vírus do tédio. Quando o script segue automaticamente sem interrupções ou avisos, gera esse vácuo. Escolho esta, que me parece significativa dessa cultura que persiste, porque não a combatemos: “Nessa época de tantas viagens, comecei a perceber que três capitais do Nordeste tinham um diferencial artístico e cultural, em relação às demais. Eram: Salvador, Fortaleza e Recife”.  Fernando Luiz observou que em Salvador os ritmos são versáteis e intensos e que Recife e Fortaleza tem em comum espaços nobres e grandes casas de espetáculos, além de uma infinidade de pequenos clubes e casas noturnas fervilhando nas periferias da cidade. Havia um movimento musical pulsante, baseado no prestigio do artista local, do criador que se insurge contra o tédio de dias em que nada acontece.

Quase nos diz com todas as letras: é preciso pensar a cultura e termos os planos que se façam necessários para o sucesso das idéias. Façamos o novo, que é o velho que estava escondido, como a última arte da chapeleira da rainha. Basta virar pelo avesso – simples assim – o marasmo e a voluptuosa servidão a falta de senso. E, à página 23 do seu livro-documentário, auto-biografia e confissão intima: “Descobri que o Rio Grande do Norte, apesar de sua riqueza cultural, era o estado onde menos se valorizava os artistas de origem popular, onde existiam movimentos populares para divulgar seus artistas e onde era maior a falta de integração da cena cultural da capital com o interior. Havia uma espécie de fosso cultural entre Natal e as cidades interioranas localizadas fora da região metropolitana. Isso com um agravante: o Rio Grande do Norte era o estado que mais valorizava artistas der outros estados, dando-lhes a eles um tratamento infinitamente superior aos da própria terra, inclusive em termos remunerários”. E conclui com uma frase que resume toda essa cultura entranhada, que se interpõe de maneira poderosa entre a vontade dos bem-intencionados: “As conseqüências desastrosas para o nosso Estado justificam nossa parca visibilidade”. Creio que ele colocou bem a necessidade de, em qualquer empreitada, o desafio de ir sempre um pouco mais além. Ora, o que nos empobrece, nos oculta. Fernando Luiz reage à coisa-feita. Tem trunfos na manga para por em evidencia os talentos potiguares. Faz a radiografia sucinta da decadência da musica nordestina. Identifica a distonia em tudo. Facilita-nos a compreensão de um fenômeno. Já o título do livro reporta à dureza e ao deságio da conversa fiada que caracteriza as instituições. Seu livro é para principiantes e doutores no oficio de fazer cultura entre nós. E numa linguagem que todos entendem e através da qual tiram conclusões extremas. Uma obra ditada pela experiência. Extremamente precisa, espelha a verdade sem artifícios.