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Fim de semana com Clarice

Colaborador de Navegos descreve o seu encontro com a autora de Perto do coração selvagem em evento patrocinado pelo Instituto Moreira Sales.

*Napoleão Veras*

A luz da constelação *Clarice* — que não cessa — esparge seus raios translúcidos sobre nós. Das paredes do Instituto Moreira Sales/SP caem anotações de frases ou pensamentos avulsos que entraram ou não para seus romances, contos, crônicas, artigos — retirados de blocos, cadernetas, guardanapos —, onde ela tentou apreender o instante, a inspiração fugaz, o lampejo, o corpo de ideias ou parte delas, tal fazemos hoje no bloco de notas do smartphone.

Letra vacilante, nervosa, seria entediada?, mas de sentido lancinante, inaugural, ângulo inusitado de enxergar o mundo, o entorno, na direção  do imprevisível.

“É curiosa a sensação de escrever. Não penso no leitor nem em mim. Nessa hora sou as palavras propriamente ditas.”

“Entre as marteladas eu ouvia o silêncio.”
“Senti-me como uma galinha perdida no trânsito.”

“A música deste livro é ‘Rapsódia com Clarinete e Orquestra’, de Debussy. E agora… agora vou começar.”

“A natureza é envolvente: ela me enovela toda e é sexualmente viva. Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia. Não humanizo bicho porque é ofensa. Há que respeitar-lhe a natureza; eu é que me animalizo.”

“Como se antes eu estivesse estado com o paladar viciado por sal e açúcar, e com a alma viciada por alegrias e dores — e nunca tivesse sentido o gosto primeiro. E agora sentia o gosto do nada.”

A percepção pontiaguda da brasileira/ucraniana atinge limiares improváveis, de tal modo que, depois de constatá-los nos resta a humildade de aceitar as nossas limitações. A artista escreve com todo o corpo. Como um saxofonista, bandoneonista, ou trompetista enrolado ao próprio instrumento, a romancista colhe a _Lettera 82_ no colo e assim datilografa suas obras experimentando a percussão e sentimentos das teclas no próprio corpo. Parece ensejar a interação universal de tudo que esteja longe ou perto, ou oculto, no macro ou microcosmo, ou o que seria importante ou mesmo desimportante ao processo criativo.

O certo é que o trivial não lhe faz vizinhança. Nem tudo que escreve é do conhecimento de todos. É como se um mundo linguístico próprio, singularíssimo, estivesse sendo parido continuamente no bojo do seu processo inventivo. Coisa de *criadores* — de que nos fala Ezra Pound. Algo que se nota em poucos autores, como em Guimarães Rosa, James Joyce, Juan Rulfo. Ou em Picasso e Joan Miró nas artes plásticas, assim como em Antoni Gaudí na escultura e arquitetura.

Alguém afirmou que a literatura de Clarice L. transita sobre o raro. Em parte. A respeito, discorre o catalão Enrique Vila-Matas: “Se um escritor não é raro, o que é? Melhor seria que fosse raríssimo.”

Na sala ao lado, imagens, fotos, edições de sua obra traduzida para vários idiomas, entrevistas a jornais como ao ‘Pasquim’ na década de 70, retrato seu pintado por De Chirico, discos e compositores que embalaram  sua literatura -Chopin e Debussy-, e o famoso  vídeo de uma entrevista concedida já para seu fim: expressão de enfado, respostas vagas, por vezes monossilábicas, sem interesse algum em ser simpática, talvez até de saco cheio em ser Clarice Lispector.

O sotaque estrangeiro como tatuagem, mesmo tendo chegado ao Brasil aos dois anos de idade. Os olhos de fenda oblíqua e as maçãs do rosto salientes seriam suficientes para conferir-lhe certidão de imigrante, de mulher exótica com irresistível sex apeal, ou as três juntas.

Sua literatura inqualificável não se passa, a rigor, em lugar algum. Assenta-se no ser humano, na intimidade e profundeza desse, levando o leitor à epifanias – apreensão da essência do discutido. Se o conteúdo lhe é essencialmente intimista, a forma é metalinguistica — discussão sobre os passos daquele fazer literário, bem visível em ‘A Hora da Estrela’.

Clarice Lispector foi escolhida pela crítica literária americana uma das maiores escritoras do século XX.