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Fragmentos de um diário

Fundador de Navegos transcreve trechos de um de seus diários íntimos, enfocando o período em que está deixando Natal para se estabelecer em Mossoró, onde ficará por três anos.

Franklin Jorge

[email protected]

[…], 16 DE JANEIRO DE 2007 – Telefonema noturno de Honório para relatar o entusiasmo de Gilson por nosso projeto de reforma do jornal e implantação da editora. Ambos falam em “revolução cultural” etc. Troco algumas palavras com Gilson, que relembra que já nos conhecemos desde a primeira vez que morei em Mossoró e ele esteve em meu escritório para tratar de assunto relacionado com a universidade. Como o agrado faz bem à alma. Só não prolongo a conversa porque João mostra-se impaciente, reclamando atenção. Desligo, impando de satisfação.

Acode-me à lembrança umas palavras que Cascudo gostava de repetir toda vez que ouvia palavras de admiração e reverência. “É mentira, mas é gostoso…” Penso sobretudo quanto minha vida teria sido fácil se eu pudesse dizer o que não sinto sem transtorno para a minha consciência. Um elogio, uma curvatura, salamaleques, e… Benesses, Sinecuras, Prestígio…

João confessa sua contrariedade diante da perspectiva de minha mudança para Mossoró. Explico-lhe da melhor forma que preciso sair de Natal, por dois motivos. Por que estou vivendo mal aqui, numa casa que não comporta meus arquivos, o que me impede de trabalhar nos meus manuscritos, no momento, inacessíveis, pois guardados numa sala na Cidade Alta etc. E, também, por que sinto necessidade de mais espaço e conforto, o que seria impossível ficando aqui, diante dos altos preços dos aluguéis. Ele compreende meus argumentos, mas não se conforma.

A dificuldade de descrever Mossoró para João, que não a conhece, mas deseja conhecer, afirma, quando eu estiver morando lá. Que é Mossoró? Com muita dificuldade chego a dizer-lhe que se trata de uma cidade incrivelmente ruidosa que subsiste ainda, em pleno século 21, como um enclave feudal pertencente à família Rosado que dela dispõe de todas as formas que a política permite ou consente. Lá, as pessoas falam aos berros, os carros estão equipados com poderosa aparelhagem de som, o nepotismo domina os hábitos políticos, o público e o privado se confundem como em nenhum outro lugar conhecido etc. Lembra-me, em resumo, um mercado a céu aberto, no qual tudo pode ser comprado e vendido,  pois na há oposição. Talvez seja a cidade mais corrupta do estado.

A posição de um autor ou de um homem público implica em responsabilidade e obrigações, como comparecer às vezes a lançamento de livros e noites de autógrafos. Eu, que adquiri a fama de insociável às custas de meus azares – e com alguma colaboração de meus desafetos – dou-me geralmente ao luxo de só prestigiar meus amigos ou aqueles autores que de fato admiro ou que, pelo o que sua obra me proporciona em prazer e experiência, me enriquecem ou gratificam. Nesse sentido, não me aborreceria ser chamado de interesseiro. Um interesseiro empenhado em lucrar intelectualmente etc. Quanto aos outros, os meus amigos, tranqüilizo-os desde agora. Não pretendo mais participar de sessões de autógrafos. É um incomodo para os amigos e a pior humilhação que se pode infligir a um autor que às vezes encara as vendas como uma poupança ou o recurso necessário para pagar uma extravagância que faz tanto bem à autoestima de um autor…

[…], 17 DE JANEIRO – Acordo pensando em trabalho. Vou pegar pesado na transcrição de minha conversa com Carlos. Abro o arquivo que ele me enviou pela Internet e percebo, para grande espanto meu, a extensão do texto, as trucagens, as lacunas, os tropeços da linguagem, períodos anômalos confusamente degravados, aos quais preciso corrigir e aperfeiçoar, dando-lhes forma e consistência. É o que chamamos de a higiene do texto, trabalho que compete ao editor. São onze laudas cheias e a perspectiva de um esforço urgente, pois há um deadline a cumprir.

Compenetro-me tardiamente de quanto fui loquaz e impertinente com a concisão. Falei como um radialista. Aguarda-me tarefa que há de exigir-me humildade, paciência e atenção redobradas. Corrijo essa papelada na mesa de um café em horário pouco movimentado. Mesmo assim, sempre aparece um ou outro conhecido.

Mantenho contato com alguns amigos através da Internet. Ao voltar para casa, desço no Cidade Jardim e vou tomar café no Portogallo, onde encontro Lula, que me recomenda a leitura de um livro sobre o tédio. Faço compras no supermercado e vou para casa. Divirto-me, jogando bola com Daiane. Nunca me senti tão bem, agora que o dia da mudança se aproxima. Tudo enfim se acomoda quando deliberamos. A mudança agiu como uma freada de arrumação.

[…], 18 DE JANEIRO – Atiro-me com poderosa energia à higiene dessa matéria bruta, desafiadora, disposta a cansar-me, sentado numa mesa da Koppenhagen, em meio ao burburinho do shopping. Cortá-la-ei sem piedade, denodadamente, para ordenar esse caos de idéias e palavras colocadas durante uma conversa que durou mais do que eu quisera. Penso quanto seria bom parar, desistindo de vez dessa longa resistência que esbarrará, em algum momento, na minha própria morte. Seria tão bom o anonimato, mas não, tenho que desafiar-me, nadar contra a correnteza, como que para cumprir um fado.

Trabalho o dia inteiro numa disposição louca. Decantei, afinal onze laudas em apenas quatro. Perdi a conta dos cafezinhos que tomei. Felizmente não fui incomodado. Apenas, no final da tarde, começaram a aparecer os amigos, que são verdadeiramente os principais obstáculos ao trabalho de intelectual. Estou exausto, mas dominado por uma espécie de felicidade selvagem. O trabalho é o único afrodisíaco sem contra-indicação.

Em casa, sinto-me um pouco desnorteado diante das providências que tenho de tomar antes de minha mudança. Encaixotamento de objetos, alguns dos quais quero dar aos meus amigos, entre os quais alguns que sentiriam se felizes se pudessem ter mais toalhas e lençóis. Calculo que se viver mais dez ou quinze anos, ainda assim terei roupas de cama e banho suficientes para prover minhas necessidades… Separo os mantimentos que não vou usar, pois nas últimas semanas tenho achado mais prático comer fora. Somente à noite, quando tenho visitas, cozinho alguma coisa ou como uma fruta, queijo e café com leite, a mais perfeita e deliciosa mistura, que por muito tempo repudiei, por ter sido em menino obrigado a bebê-la no desjejum.

A falta que mamãe faz nessas horas. Ninguém que gostasse mais de organizar uma mudança, tarefa da qual me desincumbo com indisfarçável desagrado e o que é pior, sem nenhuma prática. Enquanto separo as coisas que não vou levar, lembro-me do que ela me dizia sobre os deveres que temos para com os outros. Quantas vezes ela não me terá dito que nunca somos tão pobres que não possamos dar alguma coisa para minorar a carência de algum necessitado… A cada dia, sinto a verdade dessas palavras. Decido desfazer-me de todas as coisas que tenho em dobro e de outras que suponho não mais terei tempo para desfrutar.

Telefonema de Ruth, que convalesce de uma delicada cirurgia, assistida pela filha. Conto-lhe sobre minha próxima mudança para Mossoró, onde pretendo dar continuidade a organização dos meus manuscritos, tarefa tantas vezes adiada, por falta de condições para reuni-los todos em um só lugar que os torne acessível. Nos últimos quinze anos tenho vivido em trânsito, sem dispor dos recursos materiais necessários à regularidade de um trabalho que me exige disponibilidade e atenção.

Ruth minimiza a gravidade do seu estado de saúde, ao colocar-me, delicadamente, como o centro dessa conversa entre dois amigos que se admiram e se respeitam. Ela guarda todas as cartas que lhe escrevi nesses trinta anos e confessa quanto bem lhe fez o artigo que escrevi lembrando nossos encontros em sua sala, num terceiro andar, onde os pássaros do Arpoador vêm comer e cantar todos os dias. Creio que é o único edifício de apartamentos com direito a quintal, pelo menos na Rua Francisco Otaviano. Ela mesma terá plantado a grande árvore cujos galhos chegam ao terceiro andar e se infiltram através das janelas de seu apartamento, cenário de memoráveis encontros, como aquele em que passei parte da tarde atendendo aos telefonemas de Tancredo Neves, que seria presidente alguns meses depois, dirigidos ao nosso querido Antonio Carlos Villaça, um dos convidados para o almoço de minha despedida… Sobretudo lembramos os nossos amigos mortos.

Noto que há um pouco de mal-disfarçada ansiedade na voz de Ruth; não posso deixar de observar, após tantos anos de amizade a nos unir. Penso nas coisas que poderia ter dito e feito, tivessem sido outras as circunstâncias que deram o tom de minha existência.

Após demorar-me no banho e achando ainda cedo para ir dormir, retomei a leitura alternada de dois ou três livros muitas vezes relidos, como os ensaios de Francis Bacon, detendo-me sobre o que escreveu da amizade. Porém Daiane achou de se intrometer entre o meu desejo e as páginas do livro, o que aos poucos me levou a interromper a leitura, até que o fechei o volume e passei satisfazer-lhe a disposição de brincar, o que significa deixar-me morder e arranhar por suas afiadas garras. Por fim, enfadada com os meus agrados, saltou da cama e desapareceu em direção ao terraço. Retomo, por fim, a leitura.

Disse Bacon que quem se deleita na solidão, ou é um animal selvagem ou um deus. Eis um tema interessante para ser discutido com Lula, que pretendo ver e abraçar antes de voltar a Mossoró, terra dele, aliás.

[…], 19 DE JANEIRO — Ontem à noite, enquanto embalava alguns objetos, inesperada visita de Paulo Sérgio, com quem converso sobre minha próxima mudança, para aproveitar os recursos de que disponho no momento para organizar meus papéis, corrigir textos, aproveitando melhor o tempo que me resta para colocar o ponto final em vários títulos elaborados no curso dos últimos trinta anos, apesar de todas as dificuldades que ele já conhece. Ele tenta dissuadir-me de minha associação com o jornal, invocando as más palavras de Gustavo sobre Carlos etc. Não é a primeira informação dessa natureza que recebo sobre a mesma pessoa, contudo encerro o assunto, lembrando-lhe que Gustavo não seria a melhor pessoa para dar más informações sobre alguém. Mas, confesso, fiquei um tanto perturbado ao lembrar-me do que me dissera Ed sobre o mesmo assunto, há pouco, quando nos encontramos para um café numa livraria de Mossoró. Paulo me dá boas idéias, como a de reeditar o texto que publiquei na “Folha dos Municípios”, há uns dez anos, sobre a trajetória de Canindé Queiroz no jornalismo com a sua Gazeta do Oeste. Ele me sugere que colha novos depoimentos, esclarecendo e iluminando os fatos obscuros etc, incluindo-se aí a transcrição – como prova do estilo queirosiano — de suas diatribes inspirada pelo jovem Rosado a quem ele apodou de “Lord Cu-de-Ouro”, divulgadas com grande escândalo ao tempo em que vivi em Mossoró como chefe da Sucursal do Diário de Natal/O Poti [1993-1995], numa das polêmica mais sujas que já se viu. A idéia de escrever sobre Canindé me atrai, não a transcrição de suas infâmias, que combati contra a vontade de Serejo que, a partir daí, preparou a minha queda do cargo que ocupava.

Urdidor de grandes pautas, sugere-me Paulo Sérgio muitas outras, todas de grande originalidade, para incrementar a minha colaboração em Página Certa, semanário que se distingue por nadar contra a corrente. Daí, talvez, o fato de ser o seu criador tão mal falado, apesar do êxito do seu jornal e sua influencia na formação da opinião pública em Mossoró. Editor talentosíssimo, sempre desocupado e à espera de uma oportunidade para mostrar-nos quanto sabe, tenho-o sempre como colaborador e permanente fonte de consulta, nessa área minha profissional, o jornalismo. Passa da meia-noite quando ele se despede e vai dormir na casa da namorada.

Almoço com Honório. Temos almoçado quase todos os dias, para conversarmos sobre o projeto de Mossoró. La Tavola, Cassol, o restaurante mineiro, novamente o Cassol, La Tavola,… Apesar disso, tenho-me mantido fiel ao regime, quebrando-o algumas vezes com alimentos prescritos pela nutricionista decidida a promover minha reeducação alimentar. Ela quer que eu perca 9 quilos e meio do meu peso atual, beba muita água, reduza os cafezinhos, coma bastante verduras, legumes, frutas [provas dificílimas] etc. Já aboli completamente o açúcar, sem adotar no entanto os adoçantes naturais, como a stévia, que me repugna ao paladar. Meu grande desafio, porém, será perder esse meio quilo…

O trabalho feito com prazer energiza-me e multiplica os resultados. Há muito que não produzia tanto e com tamanho entusiasmo. Após uma longa inação, quando viajei e observei muito na companhia de Honório, por três diferentes estados nordestinos, desandei a escrever aceleradamente coisas novas, quando o quisera fazer, na verdade, outra coisa: dedicar-me inteiramente a reescrever tudo o que escrevi de 1966 a 2006. Não quero começar novos livros quando ainda não me sinto satisfeito com os que escrevi e publiquei.

Como é difícil manter um diário. Quantas vezes já não intentei fazê-lo no curso de minha vida? No máximo consigo produzir alguns fragmentos.

Escrevo a tarde inteira à mesa do Café Kopenhagen. Felizmente não sou abordado por ninguém, exceto por uma elegante senhora que me cumprimenta discretamente, presenteando-me com um belo sorriso.

[…], 02 DE JANEIRO DE 2008 – Há quase um ano em Mossoró, sem acrescentar uma linha a estas páginas. Nada mais difícil para um jornalista do que escrever sem deadline. Daqui a 26 dias completarei um ano vivendo em Mossoró, onde tenho contado com a ajuda de Michel na organização dos meus arquivos. Voltei a endividar-me com a compra de livros, necessários ao meu trabalho. Ah se eu fosse desses escritores intuitivos que se deixam conduzir pela inspiração… Não precisaria investir tanto em cada parágrafo que escrevo e receberia os mesmos afagos que recebe qualquer um desses compiladores de anedotários que se encastelaram na página de opinião da imprensa provinciana. Mas, não… Sempre faço a escolha mais difícil. A travessia mais perigosa.

Deni está passando o carnaval aqui, mas sem o filho, a quem eu desejava tanto receber.

Respondo vários e-mails antes de deitar-me. Brinco um pouco com Daiane, que finge morder a minha mão.

[…], 07 DE JANEIRO – Deni regressa a João Pessoa após alguns dias em minha companhia. Foram momentos tensos, nos quais intentei sem sucesso abrir seus olhos para o futuro. Creio, no entanto, que se trata de um caso perdido. Houve momento em que ele me disse que havia refletido sobre tudo o que lhe dissera e vira que eu tinha razão. Porém era apenas mais uma estratégia sua para levar-me na conversa. Estou decidido a retirar todo o apoio que tenho lhe dado, inclusive financeiro, pensando sempre no futuro do seu filho, criança inteligentíssima pela qual me ligo por um afeto profundo.

Respirei aliviado com sua partida. Porém ao mesmo tempo sinto o coração apertado diante de minha própria impotência diante de situação tão complexa e difícil solução.

Distraio-me de mim mesmo brincando com Daiane.

[…], 08 DE JANEIRO – Apesar de leve surto depressivo, concentro-me no meu trabalho, concluindo alguns textos e iniciando outros sobre minhas leituras de escritores. Estou mergulhado em Bruce Chatwin.

À noite visita de Michel, que andava desaparecido e sem dar noticias. Ele se propõe a fazer alguns contatos em busca de apoio para meus projetos. Reitero meu desejo de dar continuidade à publicação de meus livros através de um selo editorial próprio. Michel tem tanta sensibilidade para entender os outros. Sempre lucro conversando com ele sobre meu trabalho – esse trabalho através do qual pretendo justificar minha própria existência. Não concebo nascer e morrer sem produzir uma obra. Porém, talvez, como todo o resto, tudo não passe de vaidade…

Telefonei a Ana Luísa sobre projetos que desejo tirar do papel com o apoio do fundo de cultura Petrobrás. Ela me descortina o caminho das pedras.

[…], 09 DE JANEIRO – Manhã muito proveitosa. Trabalhei vários textos e editei outros.

De volta a casa, como compulsivamente. E, no entanto, a rigor, não sinto fome…

[…], 26 DE MARÇO – Noite. Tenho escrito em tempo integral centenas de páginas. Esqueci que tenho um diário. Nada é tão interessante que mereça um registro diário, mas diário é registro, regularidade. Escrever me absorve tanto. Não escrever um diário, bem entendido. Se eu não tivera essa idéia, certamente não devia tê-la jamais. O diário me pesa. É o pecado original do escritor.