*Francisco Miguel de Moura, Escritor, membro da Academia Piauiense de Letras
Depois da leitura que fiz d´O livro dos Afiguraves” [Editora Feedback,Natal, 2015], de Franklin Jorge, uma pergunta sem muita importância: O livro é de crônicas ou é um romance da cidade de Bom Jesus da Serra? A resposta seria esta: Não, ele é um tratado do Brasil onde vivemos e que ninguém conhece, nem nós mesmos. O certo é que foi um dos melhores livros sobre uma parte da realidade brasileira que li nos últimos tempos, com o acréscimo de que não é intelectualizado, nem pretende exaltar ou menosprezar as pessoas que vivem no interior, gostam e lá aparecem de vez em quando para “curtir”, como diz a juventude.
Diríamos que é um livro de um jornalista, mas não é uma reportagem. E que fosse. Que reportagem mais gostosa se poderia fazer sobre o povoado Bom Jesus da Serra? Uma cidade aonde se volta pelo coração, para gozar a festa da padroeira Sant’Ana, para rever os familiares, amigos e afiguráveis, aqueles que fazem ou deixam uma marca do que foram, fizeram e ainda fazem como pessoas diferentes, algumas chamadas de “loucos”, “artistas” ou tipos, em meio aos demais.A história e as histórias, que fiquem para os leitores desfrutarem virginalmente. Asseguro, entretanto, que o livro de Franklin Jorge é uma das coisas mais agradáveis, simples e profundas em literatura contemporânea. Seu estilo ameno, de tom musical como fundo, lembra o nosso O. G. Rego de Carvalho, e mais um pouco atrás, Eça de Queiroz. É uma peça de ourivesaria, a gente até tem pena de pegar e que venha a manchá-la. Meu comentário será breve e, em lugar de dizer, vou logo mostrando um pedacinho de uma das crônicas, em dois parágrafos:
“Bom Jesus, um lugar de muitas vidas. Exibe a geração de filhos seus, uma rica e surpreendente galeria de personagens que parecem nascidos da imaginação. Bom Jesus da alegria, declarada, de todos que a visitam, ou em época de férias ou no inverno.
Andava Olegário Massena pelas ruas de Bom Jesus, sempre vestido de branco linho diagonal. Remendão, usava chapéu e guarda-chuva. Beato, vivia apaixonado por Santa Rosa e Dª. Francisquinha Lopes. Era chamado de Judas, por mangoça do povo. Ele passava trancado em casa todas as Semanas Santas”. (p.130).
Cada trecho do livro que eu cite é mais gostoso. A citação foi tirada de um dos capítulos onde são citados e descritos outros tantos tipos tontos, pelo meio das gentes mais equilibradas. É o livro todo com a mesma mestria. Vejamos: Mané Chato, nome todo Manoel Florentino de Andrade, Cipriniano (apelidado de “Besouro” e “Rola Bosta”), por isto é que Dona Tonheira, esposa do Cel. Antônio Germano, pedia ao povo que respeitassem o Poeta. E vêm Joca de Marica, Chico treme-treme (dono do bar), o velho Paulinho (chamado de O Pote), Tonheiro (o negro), Mamaoca (pertencente ao clã dos Cupiras) e tantos outros. É um romance da cidade do Rio Grande do Norte como os “Lusíadas” são um poema de Portugal. Distribuído em capítulos sem títulos, fica fácil de ser degustado de uma vez ou de várias. Digo mais, sinceramente, que poucos livros que li me deixaram pedindo releitura. E este me pediu.
Em diversas partes a gente pensa que ele trata de gente inventada. Ou de gente reescrita para a formação e formosura da antiga Bom Jesus da Serra, hoje Luís Gomes. O romance-crônica é oferecido ao benfeitor da Serra de Bom Jesus, Sr. João Claudino Fernandes, talvez um dos maiores empresários do Nordeste, senão do Brasil. Cá no Piauí, todos nós o conhecemos. É um gênio do comércio e da indústria, sabe dirigir e delegar poderes à suas gerências no Piauí todo, Ceará, Maranhão, Tocantins e sei mais em que outros Estados funcionam suas empresas. E agora se vê retratado nesta obra de alta valia, sobre a terra de suas origens, sua família, sua infância.
O livro começa com João Claudino Fernandes e termina com ele, numa bela reportagem na qual o jornalista Jorge Antônio faz-lhe uma porção de perguntas seguidas. Seu João responde: “Suas perguntas me fazem pensar, menos a primeira, que considero facílima. Foi esta sobre onde e quando nasci”. Essa não lhe causou sobrosso nem dificuldade, disse no seu tom pausado e simples, de quem aprendeu as lições da vida. Seu João, mais do que ninguém, pode repetir a frase de “Afiguraves”, colocada como epígrafe: “A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Heb. 11-1).
Agora, com a palavra, Marcos Fernandes – o prefaciador: “O livro traça uma visão dos fatos históricos mais relevantes que ocorreram no século passado, na cidade, pelos olhos de testemunhas que os presenciaram. A Coluna Prestes, o Cangaço e a chegada das tecnologias tão estranhas, como rádio, eletricidade e carros. As entrevistas mostram quanto interessantes são os entrevistados, mas também a capacidade do autor de garimpar essas pessoas e sintetizar seus pensamentos, de forma a produzir um texto tão agradável e por vezes cômico. Mais uma vez o autor auxilia no resgate histórico de figuras e situações que formam a nossa identidade cultural. Sendo essa uma das suas maiores realizações intelectuais ao longo dos anos”.
Se o Piauí tivesse mil empresários como João Claudino não sofreria desemprego nem pobreza. E se o Brasil possuísse outro tanto de escritores conscientes e denodados como Franklin Jorge, nossas escolas não estariam tão pobres e tão desviadas do seu primordial papel na educação do nosso povo. Pelo menos os professores tomariam conhecimento da nossa verdadeira cultura. Franklin Jorge, o Brasil deve louvar-se por ainda possuir jornalistas e escritores da sua estirpe, embora que poucos.
* Jornal O Dia [Teresina, 20 de Dezembro de 2015]