*Laurence Bittencourt Leite
Quando em 1906 Hugo Heller pediu a Freud (através de uma carta) para indicar numa lista “dez bons livros”, o comovente da história não foi nem o pedido em si, e sim, a resposta, também por carta, de Freud. Amigo do psicanalista e participante dos famosos encontros com o grupo das quartas-feiras que iria fundar depois a Sociedade Psicanalítica Vienense, Heller era um livreiro de prestígio e o primeiro editor da revista “Imago” e também da Revista Internacional de Psicanálise.
Freud foi um missivista compulsivo e regular. Odiava quando alguém demorava a responder, já suspeitando alguma motivação “inconsciente”. Mas a resposta de Freud ao pedido de Heller é qualquer coisa de genial, como tudo que ele fez, no nível da produção textual.
Ao fazer seu pedido a Freud, não deu maiores explicações sobre o fato; Freud, no entanto, respondeu sem deixar de refletir sobre o fato de Heller dizer “dez bons livros” em vez de “as dez maiores obras da literatura mundial”. Ao iniciar sua resposta falando exatamente sobre esses dois pontos, Freud acrescenta: “com isso o sr. me encarrega não apenas de escolher os livros, mas de interpretar seu pedido”. O psicanalista falou mais alto.
Freud percebe por trás do pedido do editor e amigo, que há uma ênfase na palavra “bons” e que isso poderia significar livros com os quais nos relacionamos do mesmo modo que com “bons” amigos, acrescentando em seguida, de forma peculiar, “aos quais devemos nosso conhecimento da vida e da nossa concepção do mundo”. Incrivelmente Freud remete e associa a palavra “bons livros” a uma identidade de parentesco, a uma similaridade com “bons amigos”, cujo contato nos proporcionou prazer e de alguma forma nos ensinou e ajudou em nosso conhecimento e concepção da vida e do mundo.
Mas ele não pára íi em sua resposta e “interpretação”. Afirma que “bons livros” assim como “bons amigos”, além de nos proporcionar prazer, geram também uma dívida de conhecimento, levando-nos inevitavelmente a falarmos bem desse “amigo”, isso “diante dos outros”, e, acrescenta, “sem que essa relação suscite um temor reverencial, uma sensação da própria insignificância diante da grandeza alheia”. Ao dizer essa frase, Freud faz a indicação dos “dez bons livros”. São eles: Cartas e obras (Multatuli); O livro da jângal (Kipling); Sobre a pedra branca (Anotole France); Fecundidade (Zola); Leonardo da Vinci (Merejkovski); A gente de Seldwyla (Gottfried Keller); Os últimos dias de Hutten (C. F. Meyer); Ensaios (Macaulay); Pensadores gregos (Gomperz) e Esboços (Mark Twain).
A última parte da carta-resposta de Freud não é inferior ao seu inicio. Após nominar os “bons livros”, tal qual “bons amigos”, o velho sábio vienense diz que não sabe o que Heller fará com a lista, acrescentando que a ele, Freud, a lista parece um tanto estranha, e que por esse motivo é difícil abandoná-la com facilidade sem acrescentar alguns comentários.
A palavra “estranho” pode parecer ao leitor apressado, um tanto desconexa, mas não é. E por um motivo. O afeto que sentimos por alguém que temos como amigo dispensa racionalizações, e nas escolhas, como no caso da lista dos livros, ela nos chega como num processo de análise (como diria Freud) sem maiores censuras, e assim deve ser. Os grandes amigos como os bons livros são escolhidos como que segundo uma compulsão interior contra o qual não podemos nos defender. Isso serve também para outras escolhas na vida, que segundo o Pai da psicanãlise também não obedece a racionalizações e sim a motivações interiores que certamente não entendemos ou compreendemos, cabendo-nos apenas obedecer.
Freud faz seus comentários finais sobre o porque “aparentemente” de sua escolha ter recaído sobre tal obra e não outra de um mesmo autor, por exemplo. Diz que poderia ter selecionado outra obra do mesmo autor, como por exemplo o Docteur Pascal, de Zola, acrescentando à guisa de ilustração: “o mesmo homem que nos presenteou com um bom livro muitas vezes nos deu também de presente vários bons livros”. No caso de Multatuli, Freud diz que teve de excluir as obras de caráter puramente poético, justificando que o “bom”, em sua escolha, prevaleceu sobre o “belo”, a “edificação” sobre o prazer estético.
Ao ler a resposta de Freud, nenhuma definição me pareceu mais clara, entre o “bom” enquanto adjetivo que exprime um atributo moral, e não uma qualidade estética. Freud sabia perceber num simples pedido uma motivação maior e tirava disto toda um ensinamento de vida. Permanece um divisor de águas na cultura ocidental e na civilização humana. A carta-resposta de Freud é tão interessante que inspirou o livro “Os dez amigos de Freud”, publicado em dois volumes, pelo embaixador e historiador Sérgio Paulo Rouannet, que analisa cada um dos livros e seu autor, indicados na lista por Freud. Fica como uma “boa” recomendação de leitura.