*Alexsandro Alves
Eu tenho uma relação molecular com os autores, compositores e artistas que me influenciam. Desde criança, essa relação abraça a paternidade – como filho criado entre muitas mulheres: minha mãe, minha avó, minha tia, a ausência de uma figura masculina de carne e ossos foi maravilhosamente suprida por homens mortos – por textos e músicas que falavam a minha vida oriundos de um vale invisível, distante e secreto, mas que se revelava quando lia suas palavras e ouvia suas músicas.
Logo, essas obras passaram a ser como vozes paternas, talvez por isso tenha me aproximado mais de homens do que de mulheres nas letras, nos sons, nas tintas. Havia, portanto, uma necessidade infantil por uma companhia masculina adulta. E vários pais foram surgindo à medida que o menino se tornava homem. Eu aprendi a amar esses pais pelo que eles tinham de mais honesto e verdadeiro: sua arte. A vida deles, quando lia alguma biografia, pouco importava.
Eram vidas comuns, cercadas por faltas, por abandonos, por necessidade de superação. Mas isso eles não colocavam, ao menos descaradamente, em suas obras de arte. Claro que, no fundo, toda criação é o espírito materializado de seu criador, porém não pode ser assim de uma vez, quero dizer que, na obra de arte precisa haver outras questões que ultrapassem as necessidades de quem as criam. São essas outras questões que se ligarão ao íntimo de quem as descobre.
É como se esses homens guardassem tesouros para alguns escolhidos. Tesouros que nem eles próprios desenterrariam, por mais estranho e paradoxal que pareça, há elementos nas grandes obras que não pertencem ao seu criador, mas pertencem àqueles que resolveram trilhar o mapa proposto na obra. E o mais maravilhoso, é que o mesmo mapa leva a lugares diferentes. Quando embarcamos no Pequod, podemos trilhar o caminho de Ahab, sua loucura em caçar o cachalote Moby Dick, ou sua afeição pelo grumete Pip, entre outros mapas que nos segurarão e nos levarão a descobrir imagens, palavras e sons que ressoarão em nosso íntimo.
A grande magia, se me permitem falar assim, de um livro, é podermos dialogar com gente morta, com épocas que nem sequer nosso zigoto pensava em existir. Porém a criança, o jovem ou o homem que lê, pode construir essa relação tão próxima com seu autor preferido, pode criar laços de afeição paternal mesmo. Uma obra de arte constrói o espírito de quem a contempla, forma-o. Imaginem quantos filhos dialogarão conosco e serão formados pelo que deixarmos, ao lerem o que escrevermos.
E os autores vivos? Que podem ser nossos vizinhos, ou amigos. Suas obras ainda estão duelando com Cronos, para serem devoradas por ele ou para dominá-lo: esquecidas ou perpetuadas. Elas dialogam com nosso tempo mais diretamente, porém ainda não possuem aquela aura que o tempo matura e que torna a obra, por si só, imortal. No entanto, mesmo esses autores contemporâneos abrem portas passadas para nós, pois não escrevem de si mesmos, mas são realizações de uma genealogia literária herdada e apurada com esforço.
Herdar é um verbo importante aqui: nós escrevemos aquilo que lemos através dos filtros de nosso eu, mas as marcas de nossa genealogia de leitura sempre indicarão os nossos pais.